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Edição das 23h48min de 18 de outubro de 2007
Entrevista: Alberto Giovannini (Henrique Fleming) - Outrubro 2007
Entrevista realizada na comunidade Física do orkut: link da entrevista.
Introdução de Henrique Fleming
Olá a todos!
Meu nome é Alberto Giovannini, mas eu prefiro que vocês, durante esta entrevista, me chamem pelo meu "nickname", que é Henrique Fleming.
Sou um físico teórico, e professor do Instituto de Física da USP, São Paulo.
Terminei a graduação em 1962 e, após um estágio na Itália de dois anos, o meu doutoramento em 1969. Tornei-me professor titular em 1980, e em 2008 completarei 70 anos, e terei de me aposentar.
Aprendi física com grandes físicos: César Lattes, José Goldemberg, Luiz Carlos Gomes, Jorge André Swieca, e, sobretudo, Jun-ichi Osada e Enrico Predazzi.
Trabalhei em pesquisas nas áreas de fenomenologia das interações fortes, pólos de Regge, quebra espontânea de simetria em teoria quântica dos campos, cosmologia e em algumas outras esquisitices, como uma tentativa de interpretar a gravidade como efeito secundário da polarização eletromagnética do vácuo.
Sempre trabalhei na USP. Passei períodos longos como visitante em Turim, Roma e no CERN, Suiça; períodos mais curtos em toda sorte de lugares. Por exemplo, Herceg Novi, no Montenegro, onde tive a experiência de viver em um país comunista.
Vivo uma vida tranqüila e, na medida do possível, reclusa. Meu modelo é um santo da liturgia católica, cujo nome esqueci, que passou a vida toda em cima de uma coluna, no deserto. Como Sartre, detesto o poder. Tive de exercê-lo, como diretor-em-exercício, por seis meses, do Instituto de Física. Sobrevivemos (eu e o Instituto) por pouco.
Gosto de dar aulas. Não gosto de assistí-las.
Meu grande ídolo é Charlie Brown, do Peanuts.
Henrique Fleming, 15 de Outubro de 2007.
Perguntas e respostas
Adriano: Caro Prof. Fleming, em primeiro lugar gostaria de dizer com toda a ênfase possível que é um prazer para todos nós de gerações mais novas conviver com o senhor por meio da internet, em particular do orkut, e desfrutar da sua experiência, da sua inteligência e da sua boa vontade. :-)
Devo confessar que, antes mesmo do advento do orkut, era freqüentador da sua excelente home page e posso afirmar que li boa parte dos textos lá presentes, incluindo os técnicos. Certamente muito me foi acrescentado por tais estudos.
Sem dúvida o senhor é uma fonte de inspiração para todos da comunidade, além de contribuir de maneira única quando se trata dos nossos assuntos preferidos: física, matemática e afins.
Agora uma pergunta inicial. Quais são os seus planos para a aposentadoria? Pretende continuar envolvido com a física e o seu ensino? Tem algum projeto mais específico?
Fleming: Adriano, meus planos para a aposentadoria são de continuar fazendo exatamente a mesma coisa, isto é, dedicar-me à física e ao seu ensino. Vou continuar a escrever na internet, e possivelmente dar algumas aulas, num ritmo um pouco mais leve.
Adriano: Mais duas perguntas.
Primeiro uma de natureza mais pessoal. Se o senhor fosse um jovem estudante de física hoje, o que acredita que gostaria de estudar? Procuraria se especializar em que área e trabalhar com que tipo de problemas?
Agora a segunda, ligada à primeira, mas com um enfoque mais objetivo. Quais são as áreas quentes da física conteporânea, a seu ver? De onde podem e devem sair resultados impactantes?
Fleming: O Dirac responderia: "I don't know!".
Se eu fosse um ser puramente racional, escolheria a astrofísica, pela grande revolução em matéria de aquisição de dados. Os telescópios em órbita e os que são capazes de corrigir as distorções cusadas pela atmosfera transformaram inteiramente a astrofísica. è um segundo renascimento. Muitas surpresas já apareceram, e muitas mais aparecerão.
Contudo, eu não sou puramente racional, e sou, filosoficamente, um platonista, apaixonado pelas idéias. E, no terreno das ideías, o que mais me fascina é o que Wigner chamou de "the unreasobable effectiveness of mathematics in physical science". Gostaria de embarcar na pesquisa que usasse com o máximo radicalismo este maravilhoso instrumento de pesquisa da natureza que é a matemática (eu digo para os meus alunos que a matemática é o sexto sentido dos homens, e o sétimo das mulheres). E a área da física onde isto se dá, no momento, é a teoria das supercordas.
Daniel: E, já que eu estou com a mão na massa mesmo, faço a primeira pergunta da entrevista:
Como o Sr vê a Ciência brasileira?
Fleming: O Brasil é muito forte na área de biologia e medicina. Segundo o meu amigo Salmeron, está entre os líderes mundiais no estudo da Parasitologia. Nesta área, e em outras biomédicas, existe uma tradição mais antiga, vários institutos de pesquisa seculares, e grupos de grande qualidade espalhados pelo país. Creio que o nosso primeiro Nobel virá daí.
Meu grande e saudoso amigo argentino, Juan José Giambiagi, apaixonado pelo Brasil, me dizia, uma vez: "o Brasil precisa de um Nobel. Aí, tudo se transformará. E o mais provável é que venha da biologia. Não importa muito de onde venha".
Eu vi a Física crescer muito rapidamente, no Brasil. Quando voltei do exterior, com a minha tese de doutoramento debaixo do braço, eu tinha dois trabalhos publicados. Naquele ano, o CNPq instituiu um programa de estímulo às regiões menos desenvolvidas que funcionava mais ou menos assim: físicos de expressão teriam direito a uma verba anual do CNPq para visitar, on short notice, regiões menos desenvolvidas, para iniciar colaborações, convidar estudantes, etc. Sabem qual era o critério para se ser um físico de expressão? Ter três trabalhos publicados! Daí a seis meses eu, doutorado havia três meses, já era um "físico de expressão"...
Isto foi em 1969, e mostra o crescimento impressionante que houve, nesse intervalo. Não há como negar, então: a derivada é fortemente positiva. Hoje já temos trabalhos importantes de brasileiros, e engendrados no ambiente brasileiro.
A área que mais cresceu foi, creio eu, a de matéria condensada, que era, precisamente, a mais escassa, no Brasil, por acidentes históricos: Wataghin não era um fisico de matéria condensada. Acredito que será daí que virão os nosso primeiros grandes impactos em nível mundial.
Daniel: Quais são as suas (da Ciência brasileira) qualidadades e deficiências quando comparadas com o paradigma internacional (e.g., europeu, estadunidense, japonês, australiano).
Isso posto, na sua opinião, o que deveria ser feito para inserir a Ciência brasileira na Comunidade Internacional?
Um grande abraço, []'s!
Fleming: Os maiores obstáculos ao desenvolvimento científico, e à sua assimilação pelo país, são bem conhecidos: a baixa qualidade da educação pré-universitária, e a má administração generalizada. Temos que formar profissionais de alto nivel para superar esses obstáculos. isto naõ se faz em um dia.
Há também obstáculos de caráter cultural, muito menos sérios, mas que, de qualquer forma, atrapalham. Ainda prevalece no país um apreço muito maior à erudição do que à capacidade criativa. Costuma-se dizer: "Fulano sabe muito mais física do que Beltrano" para significar que Fulano é melhor físico do que Beltrano. Por causa dessa ambição pela erudição, muitos estudantes brasileiros hesitam em lançar-se em uma pesquisa original "porque ainda precisam aprender muito". É um erro, porque (1) Nunca se saberá tudo e, pricipalmente, (2) enfrentar um problema novo é a maneira mais eficiente de aprender os instrumentos necessários para resovê-lo.
Uma ocasião perguntaram ao grande físico soviètico Zel'dovich como ele fazia para trabalhar tão bem em tantas áreas distintas. Ele respondeu: quando entro numa área nova, naõ vou à procura de um livro. Aprendo apenas o necessário para identificar um problema interessante. A partir daí, vou aprendendo aquilo que o problema pede. Descobri que, assim, acabo obtendo um conhecimento muito mais sólido e profundo sobe a área.
É claro que há estudantes brasileiros que são tão bons que, apesar do ambiente cultural desfavorável, têm grande sucesso, em particular quando vão ao exterior, e concorrem com os delá, em geral saindo-se muto bem. Mas haverá muitos mais, quando esses problemas forem resolvidos.
Paulo E. Caro Prof Fleming:
Duas perguntas:
O senhor acredita que a busca por uma Teoria de Unificacao seja uma necessidade real da fisica ou somente (embora nao menos legitima) ansiedade intelectual dos fisicos?
Fleming: As primeiras unificações da ciência moderna (Newton descobrindo que a maçã é uma Lua pequena; Maxwell unificando ótica e o eletromagnetismo, etc) foram surpresas, portanto não foram o resultado de uma busca deliberada pela unificação. Porém, é inegável que descobrir que duas leis diferentes são apenas instâncias diversas de uma mesma coisa é um caminho para a simplificação, e gostamos de pensar que a marcha rumo à simplificação seja também a marcha rumo as causas primeiras, ou seja, à explicação.
Projetos deliberados de busca por uma unificação, porém, não são tão freqüentes. O mais famoso é o de Einstein, motivado pela grande beleza conseguida na geometrização da teoria da gravitação, e da conseqüente ambição de geometrizar "tudo". Mais recentemente, o sucesso das teorias da gauge, e o fato de que a estrutura grupal oferece até uma linguagem matemática adequada para unificar (buscar grupos simples que contenham os semi-simples sugeridos pela fenomenologia) inaugurou uma nova fase, que ainda perdura.
Contudo, que exista uma teoria unificada, conquanto esteticamente desejável, é o nosso desejo, e não uma imposição da natureza.
Paulo E. Que perspectivas o senhor vê hoje para se chegar a tal teoria? É que algo que se pode esperar no medio prazo?
Muito obrigado.
Fleming: Provavelmente, no processo de unificar as interações já consagradas com a gravitação, se descobrirá a existência de ainda outras interações. O processo pode ser infinito. Mas uma unificação parcial é possível a médio prazo. Talvez até já exista :-)
sheldon: Como professor de ensino médio fiquei curioso com uma parte de sua apresentação
- "Gosto de dar aulas. Não gosto de assistí-las."
Parece ambíguo ! O Sr. não gostaria de assistir suas aulas?
Fleming: Bem, eu, inevitavelmente, assisto as minhas aulas...
De fato, da forma que eu escrevi parece que eu estou dizendo que gosto de dar aulas que eu não gostaria de assistir. O que eu queria dizer é que eu, quando era aluno, tinha de me esforçar para assitir a maioria das aulas de meu curso. É claro que havia muitas exceções: Schenberg dava aulas lindíssimas, cheias de idéias e desafios, assim como Lattes, Goldemberg, o professor Lyra da matemática, Jun-ichi Osada e, naturalmente, Richard Feynman, que, literalmente, hipnotizava toda a platéia.
Nas "outras" aulas, porém, eu não conseguia prestar atençaõ muito mais do que 5 minutos: e então era o professor para um lado, e eu para outro. E essas não eram as aulas realmente ruins, eram as médias. O problema, na maioria dos casos era mesmo eu. As aulas realmente ruins também existiam, mas eu não as assistia: usava o tempo para estudar por mim mesmo.
Fique claro que eu estou falando da universidade. No colégio eu era uma máquina de assistir aulas: prestava muita atenção a tudo e tomava notas, para não precisar estudar muito!
alan: Há quanto o tempo senhor começou a se dedicar ao hobby de escrever artigos online.Gosto muito deles, apesar de só poder acompanhar os introdutórios, "Calculus for the practical man"
Fleming: Na realidade eu nunca os considerei um hobby, mas uma parte importante, e muito trabalhosa, de minha profissão. O que é um hobby é eu mesmo fazer a homepage, aprendendo as várias programações necessárias, como (La)Tex, PHP, html, etc.
Há muitos anos, desde os anos 60 que eu costumo escrever meus cursos e matérias auxiliares para meus alunos. A ideía de usar uma homepage veio da minha proverbial desorganização: eu vivia perdendo cadernos e anotações, e tinha que repetir tudo de novo. A homepage deu uma certa estabilidade e organização ao processo. Mas eu ainda escrevo à mão antes, e só depois ponho na tela.
LuCaSSS: olá , Prof Fleming
so 2 perguntas...
como que o mundo vê um cientista brasileiro? existe algum preconceito?
Quais as principais dificuldades que vc encontrou durante seu trajeto?
Fleming: Eu posso te dizer como o mundo científico vê um cientista brasileiro: sem particulares preconceitos. No ambeiente científico, principalmente entre físicos teóricos, o número de estrangeiros de terras distantes é enorme. Como dizia o grande físico holandês Leon Van Hove. "the language of Physics is broken English, and every physicist speaks it, except for the British and American".
O mundo em em geral, vê um cientista como um ser estranho: pouc diferença faz se é brasileiro ou inuit.
As principais dificuldades que eu encontrei no meu trajeto foram:
Externas: a vida, numa universidade muito visada, durante a ditadura militar. de longe a principal.
Internas: um pouco mais de inteligência teria me ajudado bastante...
Pedro: O que você acha da entrevista em que Lattes chama Einstein de farsa?
Link: http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/cesarlattes.html
Fleming: Discordo.
Esta é talvez a principal vantagem da ciência: a autoridade não valida necessariamente o juízo emitido. Lattes era um gênio, foi o meu primeiro patrão, e encontrei pouquíssimas pessoas, pelo mundo afora, tão brilhantes quanto ele. O que não impede que ele esteja errado nessa opinião sobre Einstein.
Ricardo: Primeiramente gostaria de ressaltar que para nós, que estamos escolhendo a física hoje para os nossos futuros, é uma oportunidade maravilhosa ter contato com alguém como o senhor.
O senhor falou em má administração generalizada. O que poderia ser feito? A estabilidade de que desfrutam os servidores públicos brasileiros, incluídos aí os pesquisadores das universidades e institutos, é negativa para a nossa ciência? As brigas por poder dentro dos institutos estão minando o desenvolvimento da pesquisa ou elas não são tão reais assim?
Fleming: A má administração a que eu me refiro é a dos governos, em quase todas as instâncias. Administração subordinada à política partidária não funciona. Administração é coisa séria.
Acho que a estabilidade dos pesquisadores das universidades e institutos não é necessariamente um mal, e nem tem sido, nas boas universidades brasileiras, desde que se entre por concursos abertos, públicos e bem divulgados, como manda a lei Na Europa existe a estabilidade há muito tempo, e os resultados são ótimos.
Brigas por poder atrapalham, mas sempre existiram e sempre existirão: é da natureza humana. Não é nada típico do Brasil.
Ricardo: O senhor falou que viveu num país comunista. Como foi a experiência?
O Richard Feynman, em um dos seus livros, fala muito sobre a maneira como os alunos brasileiros aprendiam as coisas - em suma, decorando e não entendendo. Os alunos que chegam na universidade, hoje, ainda tem dificuldades para desenvolver um aprendizado real dos conteúdos? São, digamos assim, mal treinados para aprender?
Fleming: Bom, eu vivi durante 1 mês na costa adriática da então Iugoslávia, Herceg Novi, que é a maneira de eles escreverem Herzegovina. Agora acho que é Montenegro. Esta região da Iugoslávia era inteiramente dominada pelo turismo (a costa é maravilhosa, e há cidades preciosas, como Dubrovnik, antiga colônia veneziana). Havia até supermercado, e os hotéis eram luxuosos e incrivelmente baratos! O que se notava de socialismo era pouco, mas significativo: não havia servilismo. Quando eu dei uma gorjeta para o garçon, ele me explicou que era remunerado adequadamente e propôs que eu o convidasse para beber um drink no bar, em vez da gorjeta. Parece incrível que ali, não muito tempo depois, tenha havido uma guerra ferz!
Eu assisti a um curso dado pelo Feynman, no CPPF, e dava para perceber que ele gostava da turma: achava interessantes as perguntas e elogiou certas objeções feitas a alguns de seus argumentos. Quando surgiu o livrinho de memórias dele, fiquei moderadamente surpreso com as críticas dele aos estudantes brasileiros. Naturalmente, elas se aplicam a boa parte dos estudantes brasileiros, mas se aplicam também a boa parte dos estudantes italianos e americanos: sou membro da American Association of Physics Teachers, e essas críticas são freqüentes antre eles. Não vamos cometer suicídio por isso!
Olcyr: Professor, obrigado por responder a esse tópico que certamente acrescentará a todos, tanto os que já estudam física, quanto os que ainda sonham com isso.
Tenho algumas perguntas. Qual foi o fator dominante que o incentivou a estudar física?
Fleming: Meu pai era um apaixonado pela física. Lembro-me de minha irmã reclamando, à mesa do jantar, na época em que os pais falavam e os filhos ouviam: "Louis De Broglie, de novo? "
Havia uma esplêndida biblioteca, de engenharia e física, em minha casa. Meu pai assinava o Physics Today. o American Journal of Physics, o Scientific American e até o Physical Review (que, confessou-me mais tarde, não entendia). Aliás, esta revista teve um papel decisivo para mim. Foi nela que descobri que se podia estudar física no Brasil. Até então eu achava que ia ter de fazer alguma engenharia, e depois virar algum tipo de físico amador. Folheando um Physical Review de 1957 vi uns dois ou três artigos de José Goldemberg, que estava no Canadá, mas tinha como endereço permanente: Departamento de Física, Universidade de São Paulo. Neste momento decidi sobre o meu futuro.
Olcyr: O senhor tem alguma idéia do porquê das carreiras ligadas à ciência serem tão desvalorizadas no Brasil, a ponto de raramente figurar entre as primeiras opções dos jovens?
Fleming: Bem, há a pouca tradição cultural. Vejo aqui no orkut, com freqüência, que os alunos encontram resistência dos pais, frente à escolha de uma carreira que não seja uma das tradicionais carreiras burguesas. E os pais, por sua vez, estão legitimamente preocupados com o futuro dos filhos, do ponto de vista econômico. Hoje em dia uma formação científica é uma bom investimento para o futuro, mas existem melhores, do ponto de vista de remuneração. É natural que a maioria procure a melhor remuneração. Isto está acontecendo também nos Estados Unidos, e é uma fonte de preocupação para eles.
Um dado interessante: o famoso físico russo Evgueni Lifshitz (é o Lifshitz do Landau-Lifshitz), de quem tive a fortuna de ser amigo, contou-me que, na União Soviética, todos queriam ser cientistas, e havia o problema oposto, de recrutar médicos, engenheiros, advogados, contadores...
Adriano: Prof. Fleming, o que o senhor sugeriria para melhorar o nível das graduações em física no Brasil? O senhor não acha que existe atualmente uma tendência de nivelar por baixo o ensino, em profundidade e abrangência do conteúdo, em nome de razões políticas duvidosas (como formar mais alunos anualmente)? Professores que procuram fugir a essas diretrizes populistas sofrem muita pressão institucional para se moldarem?
O senhor acredita que o modelo do Curso de Ciências Moleculares, no que tange à flexibilidade curricular, possa ser exportado com sucesso para outros cursos, como o de Física mesmo? Quais são os empecilhos que têm retardado esse progresso (ou as pessoas não estão convencidas de que isso é de fato um progresso)?
Fleming: Na realidade, dado o nivel do ensino médio no Brasil, o nivel das graduações é até mais elevado do que é lícito esperar. Isto contém, implicitamente, a resposta para o que deve ser feito para melhorar o nivel.
Temo pelas soluções "instantâneas", que, o mais das vezes, resolvem as desigualdades via solução trivial: ruim para todos. É conveniente olhar atentamente para o que a Índia e a China estão fazendo: creio que a solução virá de lá.
Não conheço muitas instituições: sempre trabalhei na mesma. Nunca sofri pressões de diretrizes populistas.
O senhor acredita que o modelo do Curso de Ciências Moleculares, no que tange à flexibilidade curricular, possa ser exportado com sucesso para outros cursos, como o de Física mesmo? Quais são os empecilhos que têm retardado esse progresso (ou as pessoas não estão convencidas de que isso é de fato um progresso)?
Sim, acredito. Aliás, é quase óbvio: poucos estudantes têm alguma idéia do que é a física atual, a química atual, e assim por diante. Algum tempo de contato, antes da decisão detalhada da carreira, é aconselhável. Basta ver o número de estudantes das Ciências Moleculares que escolhe, no avançado, um destino diferente daquele em que iniciou os estudos universitários.
Muitas pessoas não estão convencidas de que isto seja um progresso, e sua posição é, então respeitável. Outros simplesmente não querem "mexer nesse vespeiro", e aí trata-se apenas de comodismo.
Ozzy: Prof. Fleming,
A muito tempo esperava por sua entrevista...
O Sr. acha que hoje é possível que um físico trabalhe em mais de uma área durante sua vida profissional?
Pergunto isso pois todas as áreas da física me parecem interessantes e convidativas. Não gostaria de engessar minha formação me especializando em alguma área. Mas gostaria de saber se isso é idealismo de minha parte.
Caso seja possível, o que seria preciso? Bastaria ter uma boa formação? Fazer e dominar as principais disciplinas que ofereçam bons fundamentos?
Fleming: É perfeitamente possível, e comum. Embora estatísticas mostrem que a maior parte dos cientistas passem a vida toda reelaborando sua tese de doutoramento, isto é visto como um defeito.
Schenberg aconselhava seus estudantes a não se especializarem durante a formação, e, durante a carreira, a optarem pela "especialização temporária": durante algum tempo, pense só nuamcerta área; de vez em quando, terminado um bom trabalho, mude de área. E ele sempre procedeu assim.
Creio que isto seja uma questão de temperamento. Os que se interessam por muitas coisas, acabarão trabalhando em muitas áreas. É preciso lembrar, porém, que a pesquisa exige muita focalização: durante a realização de um projeto de pesquisa, é preciso toda a concentração possível. Contudo, é preciso estar consciente de que os super especialistas vão publicar mais do que você.
Ozzy: Ou o tempo de pesquisa é um pré-requisito? Por exemplo alguém que fez Doutorado em Partículas poderia fazer um pós-doc em Supercordas?
Fleming: Uma pessoa que fez doutorado aprendeu a fazer pesquisa. A partir daí deveria poder trabalhar em qualquer área, mesmo em outras ciências: possui o tirocínio para aprender o que for preciso. Vai ter que ralar muito, mas me parece que isso não é obstáculo para você!
Ozzy: Que conselhos (tanto para a vida quanto para a profissão?) o Sr. daria aos jovens físicos da comunidade?
Desculpe pelo tanto de perguntas...
Obrigado por sua participação
Fleming: Keep an independent mind.
Leia os grandes autores.
Guerreiro do Sol: Idealismo X materialismo
Prof. Fleming, O senhor se coloca como Platonista/ Idealista assim como eu....pergunto ao senhor se podemos dizer que a moderna física quântica-relativista indicaria para uma explicação idealista para o universo ?....um abraço...
Fleming: Bem, o idealista sou eu, e não a mecânica quãntica. Tudo o que eu estudo acaba sendo visto sob o prisma do idealismo. Para mim o teorema de Pitágoras já sugere uma interpretação idealista do universo. Mas há pessoas que são naturalmente materialistas, e consideram que toda a ciência teórica é uma superestrutura que não tem existência independente de nossas mentes. Ambas as posições são respeitáveis. O belo da ciência é que ela pode ser feita independentemente da solução desse problema (idealismo X materialismo). Até porque eu acredito que nunca será resolvido.
Fernando: Professor Fleming, é uma honra poder entrar em contato com alguém que faz parte da história da física brasileira.
Por exemplo, o senhor disse que já estudou com o professor Feynman, um dos professores daqui também já estudou com ele, o professor Enivaldo Bonelli, aliás ele se graduou e concluiu seu mestrado na USP, após foi fazer seu doutorado em Cornell e foi aluno e conhecido do prof. Feynman. O que eu noto é que além dele ser um bom pesquisador, não é de buscar um conhecimento geral, ele sempre diz que: "quando se entra no curso de física Deus pergunta 'você quer ter boa memória ou quer ser inteligente', referindo-se sempre que é necessário aprender física báscia, para apenas aplicá-la, para tentar entender o que se estuda, não decorá-la! Tendo outros professores ótimos, como o professor Joel. Todos sendo bons pesquisadores.
Bem sobre a não gostar de assistir aulas, somos dois. Mas uma questão que tenho notado, é que quanto melhor o professor, digamos melhor em termos não de erudição, mas de ser um bom pesquisador na sua área, melhor é a aula. Isso realmente tem algum sentido, ou foi apenas um espaço amostral muito pequeno que eu observei?
Fleming: O espaço amostral foi muito pequeno. Conheço excelentes, profundos pesquisadores, que são professores "localmente ruins", isto é, se você olha assiste a uma aula isolada, é um sofrimento. Os exemplos que eu conheço incluem pessoas que entram em pânico frente a uma platéia (Boltzmann era assim, pelo menos no final de sua vida) e outras que não possuem a mais rudimentar disciplina em sua didática: dão aulas como se o aluno fosse o próprio professor. Um professor muito ilustre que eu conheço, por exemplo, frente a uma dificuldade imprevista durante a aula, é incapaz de seguir adiante, e permanece girando em torno do problema de forma incompreensível para os outros, sem nunca desistir, esquecendo-se de que nem a sua reputação está em jogo, nem é possível aos alunos acompanhar sua seqüência de tentativas e erros.
No entanto, é bem mais raro que um bom pesquisador "globalmente ruim" didaticamente.
Fernando: Segunda pergunta, eu tenho conhecido alguns professores, que insistem em dizer que graduação em física não quer dizer nada, no sentido de que graduação não indica que o camarada será um bom pesquisador ou não, como o professor Novello entre outros. O senhor também tem essa opinião, ou o senhor acha que no geral a graduação já indica se o camarada será um bom pesquisador? Apesar ainda do longo caminho de pós-graduação pela frente.
Bem professor, só resta agradecer por esta enorme contribuição, que só tem a enriquecer a todos.
Fleming: Vale sempre a pena ouvir o que tem a dizer uma pessoa com a experiência de pesquisador e formador de pesquisadores como o prof. Novello. É verdade. Conheço exemplo dos dois extremos: um aluno que teve, provavelmente, o melhor histórico escolar do IFUSP e que decepcionou como pesquisador. Outro, não era levado a sério como aluno e se tornou um dos grandes nomes mundiais da física de baixa temperatura, chegando a liderar o Instituto Kammerlingh Onnes, da Holanda. Porém, é claro que estes são casos excepcionais. Vale a pena ser um bom aluno de graduação.
alan: O senhor normalmente comenta entusiasticamente as eventuais referências de suas notas. Em outro tópico o senhor disse ter "herdado" algumas delas do seu pai. Em quais momentos o senhor foi eventualmente apresentado a obras como coleção do Landau & Lifshitz, a coleção do Moysés Nussenzveig (provavelmente essa só seus alunos a usaram ), Lectures on physics entre outros. O senhor se mostra especialmente entusiasmado com livros clássicos da Análise, na sua opinião qual seria o principal benefício que um estudante não só da física, mas de outras áreas como engenharia teria ao estudar esses textos.Com quanto tempo o senhor acha que a maioria dos estudantes (sem extremos) poderia começar estudar mais seriamente esse tópico mesmo que independentemente.
Fleming: No caso do Landau, Lifshitz foi assim: eu estava no fim do segundo ano, e queria começar a estudar mecãnica quântica por conta própria. Consultei o prof. Moscati, que me recomendou o livro do Bohm. Outros me recomendaram o livro do Schiff. O do Bohm eu entendia, mas era muito "wordy", e se estendia mito sobre as preliminares à mecânica quântica, e eu estava muito impaciente para chegar logo às "vias de fato". O Schiff era quase um receituário, e inapropriado para estudo independente. Já desanimado, dei uma passada numa livraria que ficava nas proximidades da faculdade e vi, entre os livros que tinham acabado de aparecer, o Landau, Lifshitz, "Quantum Mechanics". Foi só folhear para ver que era exatamente o que eu estava procurando. Comprei-o na hora, e o uso desde então. Quando os demais volumes apareceram, foram imediatamente adquiridos.
A coleção do Moysés Nussenzveig me foi presenteada por ele mesmo, com uma dedicatória. Eram só os dois primeiros volumes.
Não me lembro dos detalhes sobre como conheci o Feynman Lectures, mas foi um sucesso instantâneo.
Quanto aos tratados clássicos de análise, em particular o Jordan, o entusiasmo nos meus comentários é, de fato, uma citação do Freeman Dyson e outros, que adoravam o livro. Eu só fui lê-lo muito mais tarde, e, de fato, é um livro extraordinário. Mas hoje a matemática mudou muito de linguagem, e recomendo que se estudem livros mais atuais, e também muito bons, como os do Lang, o Loomis-Sternberg, Spivak, etc.
Gabriel: Professor Fleming
Pelo que li aqui, o senhor parece uma pessoa apaixonada não só pela Física mas também pelo ensino. No entanto, me parece que às vezes falta um pouco dessa paixão (em especial a segunda) a certos professores. Muitos dos meus professores de Física e de Matemática na faculdade (falo dessas áreas não porque o fenômeno se restrinja a elas mas porque são as únicas com que tive contato) são grandes pesquisadores em suas respectivas áreas e nitidamente entendiam profundamente a matéria que estavam lecionando. Mas alguns deles tinham dificuldades enormes em transmitir esse conhecimento, uns por (pelo menos aparente) certa falta de vontade de dar aula outros por dificuldade em ensinar mesmo. Por outro lado, tive surpresas agradáveis com professores substitutos que ainda estavam fazendo seu mestrado. Claro, tive também excelentes professores titulares e péssimos professores substitutos, mas o que quero dizer com isso é que me parece que muitas vezes falta didática a professores que evidentemente entendem muito. Como aluno, eu acho preferível um professor que talvez não tenha um conhecimento tão profundo mas que saiba transmitir o conhecimento que tem a um professor que tenha conhecimento enorme mas que não consegue estabelecer contato com a turma (evidente que o ideal é alguém que consiga unir as duas qualidades, como certos professores que tive a felicidade de conhecer).
Eu queria saber o seguinte...
1) Você, enxergando da posição de professor, acha que isso (a falta de didática e/ou de falta de vontade para ensinar) pode ser mesmo um problema sério de maneira geral ou isso é impressão (ou talvez má sorte) minha?
Fleming: Certamente é um problema freqüente, podendo chegar a ser sério. O descaso por parte de alguns professores chega ao ponto de ensinar coisas erradas, ou de simplesmente faltar a um grande número de aulas. Nesse caso é preciso denunciar os professores aos órgãos responsáveis.
Gabriel: 2) Caso você ache que chegue a ser um problema, você acredita que isso possa contribuir para aquela cultura de decoreba a que se referiu mais cedo? Você acredita que isso possa comprometer a formação do aluno?
Fleming: Não me lembro de ter falado sobre a "cultura do decoreba". Falei sobre um traço cultural brasileiro que exalta apenas o vasto conhecimento, colocando em segundo plano a criatividade. O vasto conhecimento a que eu me referi não é necessariamente um conhecimento de má qualidade, decorado. O que me preocupa é que o estudante, nesse ambiente cultural, nunca se sinta à altura de inovar. É necessário sacrificar a erudição em favor da audácia da criatividade. O melhor modo de conseguir isso é pelo exemplo do orientador.
Gabriel: 3) Ainda caso o senhor acredite que possa ser um problema, que origens ele pode ter? Ele pode ser solucionado? Como?
Obrigado!
Fleming: O desinteresse pela educação revela, imediatamente, egoismo. Educar envolve, em larga medida, compartilhar. O individualista extremado não quer perder tempo com os outros. Não creio que haja solução simples: encontrei o mesmo quadro em todos os lugares do mundo. Pode-se diminuir um pouco o problema recompensando adequadamente o bom professor. Atualmente essa recompensa existe em plano moral, mas não se traduz em nenhum benefício palpável.
Vitor: Olá Prof Fleming, ou Albrto não sei como é melhor me referir.
O senhor disse:
- "Por causa dessa ambição pela erudição, muitos estudantes brasileiros hesitam em lançar-se em uma pesquisa original "porque ainda precisam aprender muito". É um erro, porque
- (1) Nunca se saberá tudo e, pricipalmente,
- (2) enfrentar um problema novo é a maneira mais eficiente de aprender os instrumentos necessários para resovê-lo."
Estas duas questões me levam a dois outros problemas da graduação em física.
1-a) Como incentivar o aluno a desenvolver o raciocínio lógico e dedutivo? Ou seja como levar o aluno a usar melhor o conhecimento que tem? ( em parte respondido em 2)
Fleming: Bom, eu diria que é preciso incentivar o desenvolvimento do raciocínio lógico e dedutivo e, também, do pensamento que não é dedutivo, mas baseado em analogias, na ousadia, na inspiração. O uso, mais refinado do que é necessário para a sobrevivência quotidiana, da lógica, aprende-se muito bem nas disciplinas de matemática, após cair nas sutís armadilhas do tratamento do infinito na análise matemática, por exemplo. Construir corretamente a recíproca de uma proposição, por exemplo. O número de vezes que um aluno insuficientemente treinado (e até alguns professores distraídos) demonstra uma proposição e crê ter demonstrado a recíproca, revela a necessidade desse treinamento. Mas ele, de qualquer forma, é feito, ao menos das instituições mais cuidadosas. Já aprender a ousar, descobrir analogias, elaborar conjecturas, raramente pode ser feito nos livros mais comuns. Uma exceção é o Feynman, e, de modo geral, os livros escritos por cientistas particularmente criativos, como Fermi, Landau, Frank Wilczek.
Vitor: 2-a)Como introduzir já em graduação, o mecanismo de pesquisa sem que seja algo tardio como uma monografia de fim de curso? 2-b)Como introduzir física modena, pós 1905 exceção da quântica, se as grades estão super saturadas de matérias e existe muita "sociologia interdepartamental para vencer" (Essa é porque o senhor foi diretor da física)
Fleming: (a)A iniciação científica é uma maneira, consagrada por ótimos resultados. Além disso, nos cursos eu procuro enfatizar, quando da introdução de qualquer tópico, os trabalhos e argumentos que levaram à sua descoberta.
Outra boa prática é solicitar que os alunos inventem problemas, mesmo em provas. Afinal, inventar problemas, ou perceber a existência deles, é o primeiro passo em toda descoberta científica.
Rafael: Caro Professor,
Primeiramente obrigado por participar dessa comunidade. Tenho certeza que falo por muitos (ousaria dizer todos!) quando digo que sua presença aqui é iluminadora. Depois desses elogios curtos, mas sinceros, deixa eu fazer perguntas também.
Política científica: Considerando o estágio atual da pesquisa em física Brasil, em institutos públicos, o senhor acredita que o governo deva ser "negligente", isto é, cada pesquisador deve ser contratado apenas pela sua qualidade e deve poder pesquisar o que melhor lhe convier ou o senhor acredita num plano diretor que aponte um norte? No segundo caso, em que instância: governamental ou institucional - e quão rigidamente esse plano diretor deveria ser aplicado?
Fleming: A pesquisa é movida pela curiosidade. Quanto mais livre uma instituição, melhor o ambiente para a criação. O governo pode estimular esta ou aquela área através de vantagens de vários tipos, mas não deve nterferir diretamente na direção que tomam as pesquisas. Naturalmente o governo pode criar institutos específicos para certos tipos de pesquisa estratégicos, se as instituições existentes não mostrarem interesse.
Rafael: Política institucional: O senhor acha que no cenário econômico atual, um instituto como o IFT, onde só se produz pesquisa básica, se sustenta? É obrigação de um instituto de física ter um balanço entre ciência básica e aplicada que o torne financeiramente saudável ou isso é uma maneira maléfica de pensar ciência?
Fleming: Eu acho que o IFT deveria marchar rumo a um Institute for Advanced Study. É o que nós temos mais próximo disso. Pesquisa básica é a sua vocação. Se, dela, surgirem, harmoniosamente, aplicações, bem-vindas sejam. Um instituto de pesquisa é financeiramente saudável quando não precisa cortar projetos de pesquisa por motivos financeiros.
Rafael: Futurologia: O senhor acredita que as universidade particulares brasileiras terão participação maior na pesquisa em física num futuro próximo? O senhor vê isso com bons ou maus olhos?
Fleming: Participação maior é quase inevitável, visto que é praticamente nula, no momento. Participação apreciável, acredito,mas a longo prazo. E vejo isto com muito bons olhos.
Rafael: Educação: Algumas perguntas vêm margiando sua experiência com o bem sucedido CECM, na USP. Sou um grande admirador desse projeto, principalmente pela propaganda bem sucedida que o Daniel faz aqui na comunidade. Quisera eu tê-lo conhecido quando era mais ingênuo. No cenário nacional, e talvez até mesmo internacional, esse projeto é uma mudança radical na forma de se ensinar ciência. O senhor visiona propostas de mudança tão abruptas para uma pós-graduação em física? Ou o senhor considera o modelo atual das pós-graduações próximo do ideal? Como o senhor vê o incentivo ao doutorado direto? Uma pós-graduação deve garantir um ecletismo na formação do aluno, ou deve fazer com que ele se concentre o maior tempo possível no seu tópico de tese para assim fazê-la melhor?
Fleming: A pós-graduação está acoplada fortemente à pesquisa, e é essencial que esteja. E a pesquisa é como um cavalo que tomou o freio nos dentes: indisciplinada e imprevisível. Ergo, a pós-graduação deve ser o tão flexivel quanto for praticavel. Um pequeno conjunto de regras, e basta. O modelo deve poder mudar rapidamente, ou, mesmo, deve ser possível que vários modelos convivam numa mesma instituição. Nesta linha, mudanças abruptas dificilmente serão necessárias, porque as correções de curso (no sentido náutico) serão a tônica e não a exceção.
Uma pós-graduação não deve pretender o ecletismo dos alunos, e sim, exatamente, ensiná-lo a trabalhar com muito foco.
Rafael: Olhando para as pós-graduações em física consideradas melhores do mundo (Harvard, Princeton, Cambridge, ....), como elas conseguiram essa excelência? O que os institutos de física e o governo brasileiro podem aprender com elas?
Fleming: São pelo menos dois casos bem distintos. Cambridge começou com uma linhagem muito ilustre, um certo Isaac Newton... Não podemos aprender muito com Cambridge. São séculos de excelência, num sistema de educação muito particular, para um povo muito particular.
Harvard e Princeton (Princeton University) não eram tão excelentes (em ciência) assim no início do século, embora fossem excelentes há tempo em outras áreas, como Law, Business e Divinity. Tiveram um boost tremendo patrocinado por Adolf Hitler. Como tinham uma excelente capacidade administrativa, trataram esse acontecimento fortuito com extrema competência, e deu no que deu. Também não dá para imitar. Não temos essa competência administrativa. O(s) governos(s) podem aprender com elas que existem profissionais para cada tipo de administração, e que a área de administração requer pessoas de extrema inteligência e sabedoria, capazes de perceber que a administração é uma coisa muito importante e, ao mesmo tempo, não é a atividade fim das instituições de educação. Politicos têm outras habilidades, principalmente a de conquistar votos. Políticos não são administradores: deveriam ser os ouvidores da nação. Mas estão administrando tudo...
Rafael: Educação (graduação): Deixando um pouco de lado propostas diferenciadas como o CECM, e pensando nos cursos tradicionais de física, como o senhor vê o curso de bacharelado em física: ele deve ser um curso minimalista, que faça com que o aluno seja capaz de adentrar por "tópicos de pesquisa" o mais rápidamente possível (através dos "cursos eletivos") ou deve ser um curso maximalista com uma ampla base nos conhecimentos fundamentais e deixar pesquisa para o doutorado? (Coloco a aspas em "tópicos de pesquisa", pq é óbvio que há assuntos de pequisa em física fundamental - espero que o senhor entenda minha pergunta.) O curso em física no Brasil é mesmo "lento", como alguns advogam?
Licenciatura em física: Há, em vários institutos, inclusive houve na USP há pouco tempo, grandes discussões sobre a licenciatura em física. Eu sei que o senhor não trabalha com licenciatura, e entendo se o senhor não se sentir confortável em responder essa pergunta, mas fare-la-ei de qualquer forma. Algumas perguntas atrás nesse tópico, falou-se sobre pressão política nos cursos de física e o senhor mesmo disse nunca ter sofrido. Creio, contudo, que a situação nas licenciaturas seja um pouco diferente, já que vejo as constantes diminuições nas grades curriculares (infelizmente, em detrimento da parte "física") como resultado de pressões externas. Como o senhor vê a situação da licenciatura em física no Brasil: a derivada está negativa? O curso de licenciatura deve mesmo conter apenas uma pequena introdução à física ou deve ser o mesmo curso do bacahrelado em física mas com disciplinas pedagógicas adicionadas, o que terminaria fazendo um curso maior? O senhor tem idéias de como poderíamos melhorar o ensino de licenciatura?
Fleming: Eu não entendo nada de licenciatura. Contudo, tenho minhas convicções sobre o ensino, uma das quais é que não existem professores "abstratos", isto é, treinados para ensinar alguma coisa não especificada a priori. Em outras palavras, parece-me evidente que, para ensinar física, o professor deve saber física. Uma historinha: Norbert Wiener, o grande matemático-cibernético, era um menino prodígio, filho de um professor de Harvard. Ainda muito jovem, resolveu que queria fazer o seu doutorado em filosofia da matemática, com Bertrand Russell (isto se passou não muito depois do surgimento do Russell-Whitehead, "Principia Mathematica"). Foi aceito por Lord Russell, e tocou-se para Cambridge. teve uma primeira entrevista com Russell, que se informou detalhadamente sobre o seu background. Terminada a entrevista, Russell lhe disse: "Inscreva-se no curso de Integral de Lebesgue do Godfrey Hardy. If you're going to study the philosophy of mathematics, you should as well know some mathematics".
Rafael: Ensino básico: O senhor mesmo citou a deterioração da qualidade dos alunos que estão saindo do ensino médio, principalmente da rede pública. É possível apontar algum culpado? Descaso do governo, baixo preparo dos professores, baixa remuneração, problemas sociais externos à educação? Quais seriam suas propostas para reverter esse quadro?
Fleming: Não acho que haja descaso (consciente) dos governos: seria preciso ser monstruosamente desumano para não se importar com a educação. Estou convencido de que é incompetência administrativa misturada com arrogância ideológica de vários matizes). Mas há uma longa história de (ir)responsáveis. É um problema terrível, e está piorando. Seria preciso fazer um grande sacrifício político: criar uma equipe apartidária, de técnicos não-políticos, que regesse a educação pública de primeiro e segundo grau, no país, por várias décadas, transcendendo governos. É o que vejo como possibiliade. E, claro, salários melhores.
Rafael: 'Física (teoria... finalmente!): O senhor tem acompanhado os desenvolvimentos recentes na teoria das supercordas, que também já foi citada nessa entrevista? O que o senhor acha dos assuntos que populam a maioria dos artigos atualmente: landscape e AdS/CFT? O senhor da opinião que o Daniel comumente compartilha aqui que esses deveriam ser assuntos secundários frente a uma String Field Theory? Quais são as perguntas da teoria das supercordas que o senhor gostaria que te respondessem?
Fleming: Uma das coisas boas da física é que você sabe muito bem se entende ou não entende de um assunto. Eu naõ entendo de supercordas. Admiro o hubris desses fantásticos "cavalgadores de nuvens", para usar a expressão de Newton da Costa sobre os físicos, mas nunca acrescentei um único grão de areia a essa praia imensa.
Como eu disse uma vez ao meu amigo e colaborador Josif Frenkel, eu não faço questão de fazer a grande descoberta, mas faço questão de entendê-la, quando for feita. Então, ao primeiro indício experimental apontando, ainda que indistintamente,para as supercordas, o velho aqui vai enfiar a cara nos artigos. Até lá, silêncio...
'Rafael: Física (fenomenologia): Dos assuntos que serão estudados pelo LHC, o senhor acredita que algum deles tocará numa fenomenologia de cordas: (mesmo que seja apenas "inspirada em cordas") tais como modelos de GUT a baixas energias (interseção de branas, dimensões extras grandes) ou uso de AdS/CFT para investigar fenômenos difrativos?
Fleming: Não. Mas ficaria muito feliz se isso acontecesse.
'Rafael: Peço desculpas antecipadas pela lista tão extensa e tediosa de perguntas. Aqui terminam as perguntas "sérias", abaixo há perguntas de carácter duvidoso, que novamente entendo se o senhor não quiser responder.
Curiosidade boba 1: O senhor acha que há mesmo uma resistência contra a teoria de supercordas no Brasil? Isso é um reflexo histórico da nossa forma de fazer ciência, como já ouvi mesmo meu orientador falar, ou teria outras razões?
Fleming: Não acredito que seja nada de muito profundo. Nós não temos história em ciência, para gerar tal atitude. Ao primeiro sucesso comprovado das supercordas, a canoa vai lotar. Menos os físicos matemáticos, é claro, que seguem seus próprios caminhos.
'Rafael: 'Curiosidade boba 2: O que o senhor acha do plano do IFT abrir um curso de graduação? Há espaço para mais uma graduação em física em SP? O senhor acha que o corpo docente do IFT consegue levar um curso inteiro (incluindo as matérias experimentais)? O senhor acredita que esse curso teria bons alunos ou seria apenas uma sobra da FUVEST?
Um forte abraço.
Fleming: Finalmente, não gostaria de opinar sobre assuntos internos do IFT. O que quer que façam, terão, de minha parte, torcida a favor.
Silent_Man: Olá Prof Fleming,
Sinto-me lisonjeado em poder dividir algumas palavras com uma pessoa tão especial na nossa amada área (Física).
A minha relação com a física (escolar) nem sempre foi um mar de rosas e não querendo achar culpados para cobrir os meus erros, na época em que cursei o ensino médio, durante os 3 anos de curso caso não fosse pelo meu gosto pela matéria tenho a certeza de que eu teria saído da escola como a maioria dos meus colegas, querendo distância da física.
Hoje estou cursando Licenciatura em Física, já pensando em um mestrado logo após a conclusão, mas a minha real vontade seria cursar um bacharel o qual a minha universidade não possui atualmente, mas estou impossibilitado de me deslocar no momento então optei pela licenciatura e acredito estar fazendo a coisa certa quanto ao meu futuro, mesmo sabendo que vou encontrar muita dificuldade nesta área.
A realidade é que de 3000 alunos que era o total geral da escola na qual cursei o ensino média à 4 anos atrás, talvez 2 ou 3 alunos estão seguindo o mesmo caminho que o meu, então eu lhe pergunto:
- Juntando a desmotivação dos professores, a falta de qualificação(didática) e muitas vezes técnicas da própria área também e a matéria que por hora pode ser tão distante da realidade dos alunos(o que não é uma verdade). A coisa não parece estar muito atraente para os jovens de hoje. Então não seria a hora de renovar o currículo agora dando mais ênfase na física moderna nas escolas, mostrando aos jovens o que está acontecendo “hoje” na área ?
Fleming: Nunca dei aulas no ensino médio. Em respeito à comunidade, não desejo expressar aqui opiniões sobre o que não entendo. Talvez seja o caso de se convidar o prof. Alberto Villani, do IFUSP, que já foi um bom pesquisador em física e que há anos se dedica a estudos sobre o ensino da física.
Silent_Man: - O que o senhor acha da nova modalidade de ensino, EaD. É possível formar bons pesquisadores e professores desta maneira na sua opinião ?
Fleming: Quanto à educação à distãncia, não vejo por que não possa "dar certo". Quando estudamos um livro por conta própria, não é isto que fazemos? E hoje em dia existem técnicas tão sofisticadas!
Scientist: Sr. Fleming, qual é a história do curso de ciências moleculares? Quais são os seus fundadores? E idealizadores?
E as mudanças substanciais, quais foram? Há obvjetivos diferentes para o futuro?
Grande abraço e obrigado.
Obrigado, forte abraço!
Fleming: Você encontra informações sobre a história do Curso de Ciências Moleculares na minha homepage, http:\\hfleming.com, no ítem http://hfleming.com/papers/inter.html.
Os idealizadores foram Roberto Lobo e Erney Plessman Camargo. Os fundadores foram, entre outros, Hernan Chaimovich, Alexandre Martins Rodrigues, Luiz Carlos Gomes, Alceu Pinho Filho, Mariano Amabis, Paulo Sergio Santos, eu, um biólogo cujo sobrenome é Bicudo e alguns outros de quem não consigo me lembrar agora.
Não houve grandes mudanças. O mecanismo de divulgação utiliza, agora, informações prestadas pela FUVEST, e a administração mudou de formato.
Vittorio: Professor Fleming
Gostaria de fazer duas simples perguntas ao senhor:
1ª - O senhor conheçe o Kumon? Se sim, qual a sua opinião quanto ao mesmo?
Fleming: Não conheço, Vittorio.
Vittorio: 2ª - O senhor sugere, já chegou a sugerir ou tem preferência por algum método de estudo?
Fleming: Mais técnicas do que método. São os do Mario, que era o meu nickname, na época. (veja as técnicas de estudo aqui)
Guilherme: Professor Fleming,
gostaria de agradecê-lo pela boa vontade em compartilhar as suas experiências conosco, e espero que o senhor esteja se divertindo!
Houve algum momento(ou fato) que aconteceu durante sua carreira que por si só fez valer a pena todo o esforço e dedicação necessários para ser físico? Se sim, qual?
Obrigado, []'s!
Fleming: Houve muitos. No início da carreira, quando fui contratado, por proposta do Prof. Jun-ichi Osada, como assistente do prof. Cesar Lattes.
Mais pelo meio da carreira, senti-me muito gratificado quando recebi da Fundação Nobel a solicitação de que eu indicasse um nome para o próximo prêmio Nobel. (A indicação não foi aceita...).
pedro: Professor, como todo mundo falou, é uma honra poder trocar idéias com o senhor
1)Gostaria de iniciar perguntando se o senhor participou do movimento estudantil quando estudante e quais suas impressões a respeito dele, antes e atualmente, se possível
Fleming: Não, a não ser pelo fato de eu ter sido um dos fundadores, e vice-presidente, do CEFISMA. Mas, na época, o CEFISMA era um centro de estudos. O movimento estudantil é importante nos momentos de crise. (Dizia Nietzsche:"Nos momentos de crise nascem os filósofos).
pedro: 2)Será que os jovens estão pesquisando mais? Falo isso porque vejo muitas pessoas interessadas aquie também na minha universidade, UFSCar. Muitas pessoas fazem iniciação científica. O senhor acredita que o aumento foi apenas absoluto e não relativo ou que realmente estamos crescendo proporcionalmente na nossa produção científica - de qualidade?
Fleming: Sim em ambos os sentidos. A qualidade imediatamente mensurável é a qualidade das revistas onde os trabalhos são publicados. Esta, aumentou. A verdadeira qualidade, o trabalho de valor permanente, só se reconhece a longo prazo.
pedro: 3)Como aspirante a pesquisador, gostaria de alguns conselhos para os jovens que optaram pelas 'aventuras' dentro da ciência. Como se preparar para a pesquisa? Já é possível produzir pesquisadores de calibre sem ter que recorrer ao exterior para doutorados e pós-doutorados? (Obviamente, o intecâmbio é bastante interessante, mas seria ele um fator quase imprescindível?)
4)Essa é só se o senhor puder responder, pois não sei se é da sua área. Como o senhor avalia a pesquisa na área de Caracterização e Análise Microestrutural da Matéria? Difração de Raio-X, Raman, Microscopia de Força Atômica etc. São áreas fortes? Tenho muito interesse nessa parte e, apesar do fato de que certamente vou me informar também na minha universidade, gostaria que, se o senhor pudesse, uma opinião pudesse ser dada.
5)Finalmente, como o senhor vê a avaliação da CAPES? É confiável? Fiquei feliz de ver muitos grupos com nível 7. Podemos confiar nesse índice e ver que nossa pesquisa realmente está com uma boa concorrência?
Agradeço esclarecimento quanto a qualquer pergunta.
Fleming: O passo fundamental é a escolha do orientador. Escolha um que seja um pesquisador importante, e siga suas instruções.
Já faz tempo que se pode produzir um pesquisador de qualidade no Brasil, mas no exterior é melhor. Vá para o exterior.
A avaliação da CAPES é confiável.
moT: Professor Fleming,
lembrando de vários relatos que vi no orkut, textos na sua página, colóquios no IFUSP contando um pouco a história da USP e do IFUSP, dos projetos que participou ativamente, como o curso de ciências moleculares da USP, os alunos que orientou e pesquisadores com quem trabalhou e instituições de pesquisa que visitou, pensei esses dias, será que o professor Fleming já cogitou escrever um livro sobre todas essas experiências? O senhor pensa em escrever um livro nesse sentido?
Obrigado,
Tom.
Fleming: Não, nunca pensei nisso. Agora estou escrevendo outros livros. Guardo a sugestão.
Fernando: Professor o senhor poderia dar uma opinião rápida sobre gravitação quântica, TOE e GUT se possível?
Uma outra pergunta, o Rafael fez, mas o senhor não falou diretamente, só para um maior esclarecimento, como o senhor vê a passagem direta ao doutorado?
Fleming: Não é útil, uma apreciação rápida sobre gravitação quântica, TOE e GUT.
Quando ao doutorado direto, é uma boa. Principalmente no exterior.
LuCaSSS: olá , Professor Fleming
umas perguntinhas....
1) pela sua experiênica, voce ja vivenciou alguma cena em que o orientador roubou a idéia de aluno da pos graduação ou IC? caso sim , poderia nos contar ?
Fleming: Não.
LuCaSSS: 2) qual a melhor maneira de se previnir de orientadores que roubão idéias dos que estão fazendo pos graduação , quando tiver uma boa ideia poderemos pedir de fato algum auxilio a um orientador?
Fleming: Não é necessário. Se houver um orientador com este grau de canalhice, todos te alertarão contra ele.
Mas não se iluda. Na física teórica, que é a área que eu conheço, o caso comum é que o orientador indique ao orientando o problema em que o doutoramento será feito. Um orientador consciencioso não dará ao estudante um problema que o próprio orientador não saiba, ao menos em princípio, como se resolve. Se não for assim, ele não poderá garantir que o doutoramento se cumpra dentro do prazo de duração da bolsa.
Leonardo: Quick questions
Prof Fleming,
O sr. tem religião?
Fleming: Só quando estou com medo. Aí, tenho todas.
Leonardo: Como o sr conheceu Lifshitz? Sakurai? Que impressão eles deixaram no sr?
Fleming: Sakurai "conheci" na Itália, quando ele foi dar um seminário. Jantamos junto. Foi só um dia. Mas eu já era fã dele, por causa de seus belos trabalhos sobre mesons vetoriais. E era um fantástico lecturer.
Lifshitz eu conheci... em João Pessoa! Ficamos amigos, e nos encontramos depois algumas vezes, na Europa. Era um grande físico, mas não é facil ser reconhecido quando o seu parceiro de trabalhos é o Landau... Tenho dois volumes da coleção Landau-Lifshitz com dedicatória dele, que ele me mandou de Moscou.
Leonardo: O sr foi preso ou fichado no DOPS durante a ditadura? Como o sr. avalia o impacto da ditadura na ciência brasileira (perdas humanas? burocracia?), em especial na USP?
Fleming: Não fui preso nem fichado. Nos anos mais dificeis eu estava fora, fazendo meu doutorado. E sempre fui pacato. Tive que fugir da polícia, na Maria Antonia, uma vez. Nós perdemos muito: Schenberg, Tiomno, Leite Lopes... Para o meu grupo, fundado pelo Tiomno, receber, de repente, a notícia de que ele tinha sido caçado, foi um tremendo golpe. E, na esteira desse acontecimento, o Swieca resolveu voltar para o Rio. Um desastre.
Na burocracia houve poucas mudanças: instalaram um general na Reitoria, para examinar quem era contratado.
Leonardo: O seu pai era engenheiro formado pela Politécnica? Ele era professor da USP ou atuava como engenheiro no mercado?
Fleming: Não. Meu pau era engenheiro pela então Escola Politécnica do Rio de Janeiro, hoje Escola de Engenharia da UFRJ. Ficava num belo prédio da praça Tiradentes. Ele nunca foi professor. Sempre trabalhou como engenheiro do que seria hoje o Ministério dos Transportes. Primeiro por dois anos, em Corumbá, depois, por quase 40 anos, em Florianópolis.
Consuelo: Da ação
Estou acompanhando a sua entrevista com muito interesse e três de seus conselhos chamaram-me a atenção: "ler os grandes clássicos", "keep your independent mind" e, finalmente, "(2) enfrentar um problema novo é a maneira mais eficiente de aprender os instrumentos necessários para resolvê-lo."
Imediatamente me lembrei do início do livro "A Tabela Periódica", de Primo Levi:
"Existem, no ar que respiramos, os chamados gases inertes. Trazem curiosos nomes gregos de origem duvidosa, que significam "o Novo", "o Oculto", "o Inativo", "o Estrangeiro". E de fato são de tal modo inertes, tão satisfeitos em sua condição, que não interferem em nenhuma reação química, não se combinam com nenhum outro elemento e justamente por este motivo ficaram sem ser observados durante séculos..."
O verdadeiro "fazedor de ciência" é o que tem o "olhar" corajoso das mentes inquientas?
Fleming: Sim. Mas também existem mentes quietas com olhares corajosos. Vide Dirac. O essencial é o olhar corajoso.
Breno: Olá Prof. Fleming, o senhor comentou que aqui no Brasil dá-se muito valor ao conhecimento do que à criatividade. Eu em particular sempre acho que sei pouco (e realmente sei pouco), durante a graduação fiz muito mais disciplinas que o necessário, agora na pós estou fazendo isso de novo. Mas pela pouca experiencia que tenho tive impressão que as idéias surgem principalmente por analogia, por isso sinto necessidade de aprender varias teorias diferentes. O senhor concorda com essa minha idéia, ou acha que o melhor a fazer é parar de disciplinas e focar 100% no projeto?
Fleming: O seu texto demonstra que você já aprendeu uma coisa muito importante. Com isto, conquistou o "direito" de projetar seu currículo, de modo a privilegiar a exploração das analogias. Siga o seu caminho e seja feliz.
alan: Como alguns membros da comunidade já citaram, talvez o perfil dos membros dessa comunidade não seja mais o representativo, por exemplo no percentual entre físicos experimentais e teóricos. Mas com base no perfil ( perfil esse sem muita profundidade) da comunidade seria possível extrapolar um desinteresse dos novos físicos no sentido de se estudar problemas mais clássicos, digamos que fora do âmbito da física de partículas, gravitação e cosmologia, como hidrodinâmica, física atmosférica, acústica,geomagnetismo, MHD. E se isso realmente acontecer, pode está vinculado ao caráter optativo que essas matérias recebem.
Fleming: Física de partículas, gravitação, etc, atraem mais porque são mais divulgadas. Mas a grande maioria dos físicos está fora dessas áreas. O Brasil está tendendo rapidamente a isso, se já não chegou lá. Historicamente, aqui se começou com raios cósmicos, e isto é uma outra fonte de assimetria.
Ozzy: Prof. Fleming, Como o Sr. escolheu com quem e em qual área trabalhar?
Os meus dois primeiros orientadores viajaram para o exterior. Só havia o prof. Osada, e foi ele quem determinou a área em que eu iria trabalhar.
Ozzy: Quais foram seus medos e receios (se houveram) após obter o Bacharelado, e após obter o doutoramento?
Procurava não pensar muito nas coisas que podiam dar errado. Mas eu achava que tinha uma boa chance, porque tinha bastante prestígio entre os professores. Depois do doutoramento eu tinha medo de não conseguir trabalhar sem o meu orientador. Meu primeiro trabalho "solo" curou tudo.
Ozzy: Que conselhos o Sr. daria para os físicos da comunidade que para serem bons professores/pesquisadores?
Bons professores: Markus Fierz, físico suiço, ex-aluno de Pauli, era uma grande professor. Perguntaram a ele o segredo. Ele disse, no seu pesado sotaque alemão: "To give a good lecture you have to prreparre, and prrreparre and prreparre it"
Ozzy: Qual seu segredo em manter a vitalidade para o ensino e a pesquisa? O que mais lhe motiva nesse sentido? O Sr. já se sentiu desmotivado em algum ponto de sua carreira? Se sim, como reverteu o quadro?
Não tenho tanta vitalidade assim. Já tive muito mais. O segredo é não envelhecer, mas não sei como se faz isso! Mas, nunca me senti desmotivado. Talvez porque não tenha escolha: não sei fazer nenhuma outra coisa...
Fabio: Prof Fleming, desculpe a pergunta mas qual foi a sua maior decepção profissional? E qual a sua maior alegria?
Fleming: No dia a dia, as maiores decepções são os pareceres rejeitando aquele artigo que você achava tão importante. Em geral ela, a decepção, vem acompanhada da ira ao se perceber que o referee nem se deu ao trabalho de ler com atençaõ o artigo, e da angústia de ter de responder ao referee, afundar de novo naquele processo que você julgava já ter terminado. Mas é inevitável, e é o fel da carreira de um pesquisador. O próprio Einstein teve um trabalho rejeitado pelo Physical Review (e ficou furioso!). O referee que rejeitou o artigo de Einstein foi H. Robertson (da métrica de Robertson-Walker) e ele tinha razão: o artigo estava errado.
Nessa mesma linha, quando o trabalho é aceito por uma revista importante, sempre se estoura uma champagnezinha (pessoas que publicam muito em boas revistas, como a profa. Carolina Nemes, têm de ter mais comedimento...).
Num plano mais elevado, e trocando decepção por tristeza, a maior tristeza de minha vida profissional foi a morte de Jorge André Swieca. Jorge André era o homem que dava as respostas definitivas ás minhas dúvidas. Ele tinha um talento inigualável para identificar, quase instantaneamente, o ponto crucial do problema, e tudo se transformava em luz. Sua morte me deixou pequeno.
Fabio: Muito obrigado Prof Fleming.
- "Ele tinha um talento inigualável para identificar, quase instantaneamente, o ponto crucial do problema"
Essa é uma qualidade que eu invejo muito nos mais talentosos e experientes.
fernando: Prof. Fleming,
J. Osada em seu livro Evolucao dos Conceitos da Fisica, recomenda que quem for trabalhar em centros isolados ou pequenos, prefira trabalhar com fisica matematica, refinando teorias ja existentes. Mas "refinar teoria" usualmente leva a poucas publicações, e em um mundo em que "publish or perish" é quase regra, como conciliar essa sugestão? Ou ela não vale mais nos dias atuais?
(Tem outras tantas perguntas, mas acho que o que ja existem ja da para preencher muito tempo!)
Fleming: Trabalhei com Osada num período em que, mesmo em São Paulo, se estava muito isolado. Os preprints chegavam aqui no mínimo dois meses depois de term sido divulgados nos grandes centros, e as revistas, muito mais tarde. Você só pegava as sobras. O jeito era trabalhar fora do mainstream. Menos mal que não havia o publish or perish.
Hoje em dia você lê o arxiv junto com o seu concorrente americano. Não há mais isolamento. Há algum lugar que não tenha internet?
Agora, se eu conheço o Osada (e eu conheço!) o que ele chama de física-matemática não é o que você encontra nas notas do Barata (teoremas, grandes sínteses, analogias sobre analogias, etc.), mas métodos de cálculo, estilo Whittaker-Watson, Bateman Manuscript Project, ou mesmo Jackson. Estender os cálculso existentes a situações mais realísticas e complicadas. Aliás, isto era o que o Jackson fazia, antes de virar autor de livros. O excelente físico franco-brasileiro Jean Meyer me disse (antes do surgimento do livro) que o J.D. Jackson era famoso como a pessoa que podia calcular qualquer coisa: desde uma antena de satélite até a viga mestra de uma ponte. O Osada também era capaz disso.