Dissenso e Utopia
Experiência Pedagógica Interdisciplinar | 2012
A reformulação curricular, que se implementa atualmente no Departamento de Artes Cênicas, se iniciou em 2006, com a alteração das provas específicas do Vestibular, em que se buscava superar o antigo modelo de avaliação em separado das competências nas habilitações, pela proposição de um enfoque integrado das competências desejadas. Podemos dizer que se tratava de uma mudança de abordagem: de disciplinar, para um paradigma que valoriza um projeto. Um corolário da proposta é o redimensionamento do horizonte do perfil do ingressante: de habilidades específicas – ator, diretor, teórico, cenógrafo, professor – para o perfil abrangente do artista-pesquisador-pedagogo. Depois do sétimo ano de implantação, é notável a eficácia do processo seletivo, fato que impulsiona crescentemente o curso na direção da interdisciplinaridade, não
obstante a forte estrutura compartimentalizada que o currículo da universidade impõe. Tanto assim que o máximo de inovação que a reformulação curricular conseguiu foi garantir um modelo híbrido, no quarto semestre, em que o projeto se desenvolve sem quebrar o regime de disciplinas. Em um projeto, por sua proximidade do processo teatral, as aulas se transformam em ensaios e as soluções cênicas aparecem no risco da experiência. A metodologia do projeto é indutiva: não oferece a totalidade, mas se dispõe a aprofundar o particular, a aprimorar o detalhe. O projeto favorece o diálogo entre a teoria e a prática e supera a fragmentação entre o saber e o fazer: o projeto desafia a criação do campo do saber fazer. Convencidos dos benefícios desta estratégia pedagógica, os docentes do Departamento de Artes Cênicas propõem, para o primeiro semestre de 2012, três projetos interdisciplinares autônomos, que se imbricam e se apresentam ao final de cada mês. A iniciativa condiz com nosso Projeto Político Pedagógico, que valoriza processos que estimulam a “interdisciplinaridade”, “a experimentação e o risco”, buscando-se “a formação de um artista e educador presente no presente”. O momento atual exige reflexão e atuação propositiva, por parte dos atores da universidade - alunos, funcionários e docentes. O projeto pedagógico interdisciplinar visa a contribuir para este debate, segundo seus três eixos cardinais: “Formas do teatro político: agitprop, teatro jornal e performance política ”, “Coralidades e Dissenso” e “Utopias e Manifestos”.
EXPERIMENTO 1
FORMAS DO TEATRO POLÍTICO: AGITPROP, TEATRO JORNAL E PERFORMANCE POLÍTICA
- Beth Lopes, Fábio Cintra, Fausto Viana, Flávio Desgranges, José Fernando Azevedo, Paula Carrara, Sayô Pereira e Sérgio de Carvalho.
O grupo de trabalho irá estudar de um ponto de vista teórico e prático as
principais formas do teatro político no sec. XX e início do sec. XXI, com vistas a
sua utilização hoje. Foram escolhidas as seguintes linhas de pesquisa como
orientação para o semestre:
I- Atuação coletiva e princípio da montagem. Neste módulo serão
investigados modelos do teatro modernista russo nas áreas da poesia, do teatro,
do cinema, com especial destaque para sua procura de formas coletivas de
atuação, cenografia, encenação e dramaturgia. Textos e trabalhos artísticos de
autores como Maiakovski, Meyerhold e Eisenstein fornecerão a base crítica do
trabalho.
II- Experimentos de teatro jornal. Neste módulo serão desenvolvidos os
instrumentos artísticos abordados na primeira fase, agora voltados para a prática
de exercícios de teatro jornal. Outros autores modernos que pesquisaram
técnicas de teatro jornal, de origem alemã e norte-americana serão estudados. A
obra de Augusto Boal entrará como referência para a prática cênica inspirada no
noticiário atual.
III- Performance política e peça didática. O último módulo vai integrar as
experiências anteriores, e estabelecer suas metas de estudo de acordo com os
interesses temáticos do grupo de trabalho nesta fase. A peça didática aparece
aqui como referência para uma teatralidade coletiva dialética e será combinada
a experimentos com técnicas contemporâneas de performance política.
EXPERIMENTO 2
CORALIDADES E DISSENSO
- Alice K, Antonio Araújo, Cibele Forjaz, Maria Lúcia Pupo, Patrícia Noronha, Sílvia Fernandes e Zebba Dal Farra.
O projeto se propõe a problematizar a questão das formas de ação coletiva,
tanto no âmbito da universidade quanto na esfera das relações entre os
cidadãos. Dentro dessa preocupação, pensamos trabalhar as noções de coro e
coralidade em suas várias conformações, desde o coro como voz única dentro
da cidade aos coros dialéticos, atravessados por contradições, chegando até os
coros polifônicos, que funcionam menos como um todo uníssono do que como
um conjunto de singularidades.
Entre as questões que gostaríamos de investigar ao longo do semestre
destacamos: Em que medida a forma coral conseguiria materializar as
aspirações e os atos coletivos da comunidade? Qual a função que vem sendo
cumprida pelo coro na criação artística atual? A coralidade seria em si mesma
um modo de criação polifônico, um dispositivo agenciador de trabalho
compartilhado em sala de ensaio? A musicalidade continua sendo referência
para a criação da intervenção coral? Ela seria sinônimo de indivisão, ou a
harmonia que ela revela pode emergir da dissonância?
Nessa direção, a noção de dissenso de Jacques Rancière ressalta que esse
“termo não busca simplesmente valorizar a diferença e o conflito sob suas
diversas formas [...] o dissenso não é a diferença de sentimentos ou de
maneiras de sentir que a política deveria respeitar”. Para ele, o dissenso seria
“uma perturbação no sensível, uma modificação singular no que é dizível,
visível, contável [...] um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum”.
Essa perturbação do sensível pode ser pensada para o filósofo francês a partir
das palavras política e polícia:
- O que se passa, com efeito, quando as forças da ordem são enviadas para reprimir uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função. Assim o dissenso, antes de ser a oposição entre um governo e pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí seu lugar. E, aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: “Vamos circular, não há nada para ver”. O dissenso tem assim por objeto o que chamo o recorte do sensível, a distribuição dos espaços privados e públicos, dos assuntos de que neles se trata ou não, e dos atores que têm ou não motivos de estar aí para deles se ocupar. Antes de ser um conflito de classes ou de partidos, a política é um conflito sobre a configuração de mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos.
Interessa-nos neste projeto fazer um cruzamento entre as questões do dissenso e a noção de coletivo concretizada por meio das diferentes formas de coralidade.
EXPERIMENTO 3
UTOPIAS E MANIFESTOS
- Eduardo Coutinho, Elisabeth Azevedo, Felisberto Sabino, Helena Bastos, Joaquim Gama, Luiz Fernando Ramos, Marcelo Denny, Marcos Bulhões e Maria Thaís.
O projeto é estudar as utopias, principalmente aquelas que no século XX inspiraram invenções e revolucionaram o teatro e a arte, gerando transformações nos paradigmas anteriores. Projetos que, radicais na criação de novas formas e modos de ser da estética, foram essencialmente políticos. Estas utopias estão latentes nos diversos manifestos escritos e propagados ao longo do século passado, que se tornam por isso objetos preferenciais da pesquisa. São eles, por exemplo, o Manifesto do Teatro Futurista Sintético, o Manifesto do Cubo Futurismo Russo, o Manifesto do Realismo de Naum Gabo que ilumina o construtivismo russo, o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, O Manifesto por uma arte independente de Breton e Trotski, o Manifesto do neoconcretismo brasileiro, o Manifesto Teremos de Ser Radicais, de Luiz Roberto Galizia, ou o Manifesto do Teatro da Morte de Tadeusz Kantor. Muitos são os manifestos, muitas as possibilidades de articulação entre eles e as peças e textos teóricos que os entrelaçam. A proposta é definir, ao longo do processo, alguns desses manifestos, peças e reflexões decorrentes para, em torno deles, pensarmos e criarmos juntos um ou dois vetores de operação de processos cênicos que manifestem nossos mais radicais e libertários desejos artísticos e políticos. Idealmente, ao fim do semestre, teríamos experimentos de cena e um manifesto que fosse composto pelo coletivo de alunos e professores.