HETEROTOPIAS

De Stoa
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Heterotopias

“ Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: – Para onde cavalga senhor? – Não sei direito – eu disse –, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo. – Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele. – Sim – respondi – Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu objetivo. – O senhor não leva provisões – disse ele. – Não preciso de nenhuma – disse eu. – A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa. “

(KAFKA, Franz. “A Partida”)

OBJETIVOS

      Apresentamos como objetivo principal deste projeto a investigação do conceito de heterotopia, originalmente apresentado por Michel Foucault em uma conferência denominada “De outros espaços”. Entendemos heterotopia como um espaço outro, que difere radicalmente dos espaços habitualmente percebidos no cotidiano, mas que os reflete e os questiona. Nas palavras de Foucault, heterotopias “são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente representados, contestados e invertidos.” A imagem do espelho, também apresentada no texto, elucida de maneira um pouco mais esclarecedora o conceito em questão:        

“No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade, e exerce um tipo de contra-ação à posição que eu ocupo. Do sítio em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no sítio onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá.”

      Assim como o espelho leva aquele que o observa a se perceber diante da imagem de sua realidade, o teatro, como um espaço heterotópico, refletiria ao espectador a imagem irreal, virtual de sua realidade. Assim como fez Kantor com a sua poética da morte, o efeito de criar na cena relações outras que reinventam o cotidiano, gera o duplo movimento no espectador: o de perceber as relações que se operam em seu convívio e o de perceber como as relações conseguem se reinventar na irrealidade refletida do teatro. Se essa experiência se efetiva atravessando o espectador, isso leva o espectador a desnaturalizar a vida, a perceber como as relações se dão neste espaço cotidiano permitindo questiona-las e reconstruir de outras maneiras essas relações cotidianas.
      A partir deste conceito e do que ele nos traz, desejamos estudar as heterotopias já existentes, algumas das quais já indicadas pelo filósofo, e desejamos, também e principalmente, averiguar a possibilidade de criação cênica de novas heterotopias. Acreditamos nestes espaços não como simples localizações geográficas e concretas, mas como cosmos outros, onde as relações se estruturam, ou podem se estruturar, de maneiras radicalmente diferentes das relações a que estamos habituados. Cremos, portanto, nas heterotopias como possibilidades concretas de experienciação de novas maneiras de vida, de novas formas de subjetivação e de encontros entre estas diferentes formas. Propomo-nos a tentar criá-las a partir destes parâmetros.

METODOLOGIA

      Pretendemos desenvolver o projeto como um estudo que contemple tanto a teoria quanto a prática. Para isto, partiremos de alguns textos teóricos básicos, indicados na bibliografia, e teremos, também, um primeiro momento de levantamento de possibilidades de materiais poéticos a serem trabalhados. O diálogo com autores e obras que nos forneçam temáticas favoráveis ao estudo desses lugares-outros (constituídos de relações-outras) nos parece ser um elemento enriquecedor e facilitador à criação cênica nos servindo como gatilhos que provoquem movimentos e estimulem o trabalho a ser realizado.

Planejamos também o desenvolvimento de exercícios práticos que nos permitam trabalhar a construção e a invenção de novas formas de se relacionar com os outros e com o espaço. Neste momento, partimos da idéia de trabalhar com alguns fundamentos oriundos do viewpoints acreditando ser um treinamento que nos forneça um novo vocabulário para a construção dessas novas formas de relação e com outras vivências, exercícios e jogos que nos permitam explorar os conceitos lidos e debatidos também na experiência prática, investigando as possibilidades de diferentes relações em diferentes espaços. Por isso pretendemos nestes dois meses dividir o trabalho em duas fases: 1º mês - levantamento de material poético, entendimento dos conceitos no âmbito teórico e prático com experimentações livres, visitas a espaços heterotópicos e proposições outras. 2º mês - formalização de um experimento cênico, a partir da escolha de materiais póéticos definidos.

BIBLIOGRAFIA-BASE ALVIM. Roberto. Dramáticas do Transumano. BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. São Paulo: Martins fontes, 2000. DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2005. __________. Mil platôs, vol. 1. São Paulo: Editora 34. FOUCAULT. Michel. De outros espaços. ____________. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2011. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. São Paulo: ANPED, n. 19, p. 20-28, 2002.

BIBLIOGRAFIA-COMPLEMENTAR ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BEY, Hakin. T.A.Z. - Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora. 2001 BOGART, Anne & LANDAU, Tina. The Viewpoints Book. Nova Iorque: TCG, 2005. GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 2011. KANTOR, Tadeusz. O teatro da morte. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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