IACE/O bruxo do milagre econômico
O Bruxo do Milagre Econômico
Vera Brandimarte e Claudia Safatle
Com seu jeito irrequieto, piadas ácidas e sempre muito bem-informado, o deputado Antonio Delfim Netto, 77 anos, nutre uma obsessão: "Tento mudar o assunto, mas não consigo escrever nada a não ser sobre a porcaria que eles estão fazendo agora. As exportações no mundo estão crescendo 26%. A nossa cresce 32% e achamos que somos nós que estamos fazendo crescer 32%. Na verdade, o esforço exportador foi de apenas 7%, e agora o câmbio valorizou de tal forma que vamos sacrificar tudo. Vamos atingir a meta de inflação do mesmo jeito que o Gustavo Franco atingiu 1,7% em 1998: com câmbio supervalorizado. Estamos repetindo o mesmo erro!" Há 40 anos na vida pública e há 19 no Parlamento, Delfim não abandona a cena principal do teatro do poder brasileiro. Participa ativamente das discussões relevantes sobre a economia nacional, em duas colunas semanais de prestígio na imprensa brasileira - na "Folha de S. Paulo" e no Valor - , nas articulações do Congresso Nacional, no mundo empresarial, aconselha o Executivo e transita com naturalidade entre todas as correntes políticas. Nos últimos anos, não houve um seminário ou congresso relevante no país que tenha dispensado sua presença.
Para quem acha que já tinha visto tudo de Delfim, ele reservou uma surpresa: filiou-se ao PMDB, o partido que o combateu duramente nos tempos da ditadura. E anda animado com a possibilidade de viabilizar uma candidatura como a de Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) à Presidência da República, um nome que poderia unir os políticos e curar as feridas da atual crise política.
A trajetória de Delfim é no mínimo curiosa. Foi o ministro da economia mais poderoso que o Brasil já teve e conseguiu um feito que ninguém repetiu: durante sete anos, conduziu o país com taxas de crescimento de 10,16%, na média, ao ano. Um período, de 1967 a 1973, em que o PIB quase dobrou, com crescimento acumulado de 96,5%. No entanto, governou, ou reinou, amparado no poder que lhe deu um ato de exceção, o Ato Institucional nº 5, num dos períodos mais sangrentos da história do país, nos anos da ditadura militar. Por isso mesmo, tornou-se um símbolo dos "anos de chumbo" e por muito tempo foi apontado pela esquerda como o homem que quebrou o país após ter construído uma dívida externa com obras faraônicas.
Vinte anos depois de ter deixado o governo, agora em seu apertado gabinete no Congresso Nacional, Delfim atravessa os mais conflituosos momentos da democracia brasileira como uma das figuras de maior influência do Legislativo. Foi ali que o deputado recebeu a reportagem do Valor, para uma longa entrevista em que revisitou seus anos no comando da política econômica do país.
"Não é porque tínhamos a conta movimento que não controlávamos nada. Eram outros os mecanismos, uma outra teoria. Controlava-se a inflação através dos meios de pagamento, não de juros" O acaso o conduziu a Brasília. O presidente Arthur da Costa e Silva (1967-1969) queria alguém para fazer uma exposição sobre agricultura. Ruy Gomes de Almeida, então presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro, indicou-lhe um professor paulista, que em 1958 havia defendido a tese "O Problema do Café no Brasil", considerado um clássico sobre o assunto. "O presidente mandou me convidar, levei uns gráficos e dei uma aula sobre agricultura. Nos despedimos e nunca mais nos vimos. Até que, uns três meses antes da sua posse, um dia entrou no meu gabinete de secretário da Fazenda do Estado de São Paulo um coronel com uma carta. Era o Mário Andreazza, com uma carta do Costa e Silva, me convidando para ser ministro da Fazenda."
Delfim chegou ao governo com Costa e Silva, em 1967, e continuou na pasta no governo Médici, até março de 1974, período em que o país viveu o "milagre econômico". Voltou ao poder como ministro da Agricultura de Figueiredo, em março de 1979, e deixou a pasta alguns meses depois, para assumir a Secretaria do Planejamento, que havia sido transformada para seu antecessor, Mário Henrique Simonsen, em um poderoso ministério. Depois do sucesso dos anos 70, a década de 80 o esperava com uma supercrise. O país estava quebrado. Delfim diz que o recebeu quebrado, que Simonsen abandonou o posto porque viu que "as contas não fechavam". E reage com dureza aos críticos que o acusaram de ter feito uma política de crescimento e endividamento que teria levado o país ao abismo.
Segundo seu relato, o Brasil tinha caído no abismo antes, em 1979. No ano seguinte, já não havia qualquer futuro. "Se o país crescesse 4% ou 9%, em nada alterava o balanço de contas correntes, que era o crítico", argumenta.
Não foram os árabes, que criaram o cartel do petróleo (Opep) e puxaram os preços do barril de pouco mais de US$ 1 para US$ 34 em dois choques, os culpados pela falência do país. Para Delfim, a culpa foi do general Ernesto Geisel, "que mandava na Petrobras", e não teve qualquer reação quando o problema ainda era uma ameaça, em 1972, e se recusou a abrir a exploração de petróleo ao capital estrangeiro. Tampouco a responsabilidade final pode ser atribuída a Paul Volcker, o presidente do Banco Central americano, que, em reação à inflação provocada pela alta do petróleo, elevou os juros nos EUA. Delfim diz que, nesse momento, a dívida externa brasileira já tinha sido criada por Geisel e sua origem era o financiamento das importações de petróleo e o megalômano II PND (Programa Nacional de Desenvolvimento). "O plano foi um desastre."
Desenvolvimento precisa de um Estado amigável, que deixa você se apropriar dos benefícios do que você ganha. E o empresário precisa acreditar que haverá crescimento.
Louve-se, em Delfim, a coerência. Ele foi e continua sendo adepto incondicional das políticas de crescimento. "Só tem crescimento quando eu creio que pode crescer. Aí eu tomo risco. É por isso que não é a poupança que limita o investimento. O velho Keynes (John Maynard Keynes, economista britânico) nisso deu um baile. É o investimento que cria a poupança. A poupança vem depois da produção. A vida mostrou que é assim. Foi assim no Brasil, na Polônia, na Iugoslávia, na Coréia, na Rússia, está sendo assim na China", diz. E é exatamente esse o aspecto que mais critica, tanto no governo anterior, de FHC, quanto na gestão do PT. "Essa idéia de que não tem capacidade produtiva é absolutamente estática."
Olhando os desdobramentos da crise dos anos 80, é nítida a percepção de que ainda hoje o país tenta se desvencilhar dos problemas gerados desde então. O Brasil saiu da crise do balanço de pagamentos e Delfim entregou a economia ao primeiro governo civil, em 1985, com o balanço ajustado, mas com uma inflação de 200% ao ano. Seguiram-se os planos de estabilização, numa sucessão de erros e fracassos, até o sucesso do Plano Real no combate à hiperinflação. Mas, novamente, o país caiu numa crise de balanço de pagamentos, detonada por uma política de valorização do câmbio, e, mais uma vez, quebrou no final de 1998, quando buscou socorro junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Faz 25 anos, diz Delfim, que o país começou a enfrentar uma crise que até hoje não acabou. "Saímos da crise de contas correntes, fomos para o Real, reconstruímos a crise de contas correntes. Agora que estamos saindo de novo de uma crise de contas correntes e estamos voltando a crescer, o fator limitante é que o país não acredita que pode crescer", sintetiza.
São memoráveis as idas e vindas do acordo que Delfim fez com o FMI em 1983. A cada carta de intenção se seguia um pedido de "waiver" (perdão) e voltava tudo ao começo. O então ministro ficou conhecido por "enganar" o FMI. Ele reage: "Ninguém engana o Fundo." Simplesmente, se as metas acertadas levassem o país à recessão, ele optava por não cumpri-las. Tudo, porém, no maior entendimento. O problema das dificuldades das negociações posteriores com o Fundo "é que nós adquirimos uma arrogância". O que é compreensível e, no Brasil, começou com "aquela irresponsabilidade gloriosa do JK, que declarou: 'Vamos deixar o Fundo de lado'." Na verdade, há, em todo o mundo, um comportamento hostil em relação ao FMI. Delfim atribui isso ao fato de o Fundo só aparecer "quando o país está pegando fogo e aí o cara diz ele é que pôs fogo".
Soma-se a isso a " burrice majestática da esquerda. Então, a coisa contra o Fundo fazia parte da campanha eleitoral". Hoje, a esquerda acredita que "o Consenso de Washington causou um grande mal". Quando era criticado e responsabilizado pelos problemas do país, ainda não havia sido aplicado aqui. "Só em 1999 é que o governo instituiu o câmbio flutuante, ponto número um do Consenso. O segundo é o equilíbrio fiscal, mas o compromisso de seguir uma meta de 3,5% do PIB de superávit também só começou depois do acordo com o Fundo", comenta Delfim. "O Fernando Henrique, no primeiro quadriênio, não fez nenhum superávit", lembra.
Em meio a uma crise política de grandes proporções, o deputado Delfim Netto, antes do PP, partido da base aliada, foi chamado pelo presidente da República para ajudar a construir uma saída para a política econômica, que desate os nós que impedem um crescimento mais robusto da economia. Delfim deu sua receita: "O crescimento tem que manter a ênfase no setor exportador, baixar as alíquotas de importação, aproveitar a boa maré externa, acelerar os investimentos, fazer um corte nas despesas públicas ordenado, um pouquinho por ano, num programa de cinco anos". E acrescentou a proposta de zerar o déficit nominal até 2010, como um instrumento que, se crível, permitiria uma rápida queda da taxa de juros Selic, para algo entre 4% e 6% ao ano.
A pedido do presidente, Delfim tentou arrumar apoio político e empresarial para esse programa, mas o tema não foi adiante. Com certa melancolia, ele comenta: "Nesse governo já acabou tudo, foi murchando, murchando. Aquele negócio não foi invenção minha. Eu ajudei o governo naquilo. E as pessoas até agora não têm nenhuma objeção decente. Os que não querem é porque a proposta explicita o custo da política monetária. Já fizemos R$ 60 bilhões de superávit primário, e gastamos R$ 80 bilhões de juros." O fato é que tanto os técnicos do Ministério da Fazenda quanto a diretoria do Banco Central foram contra e o comando do governo não teve energia para avançar.
Câmbio valorizado e juros elevados ferem a lógica de Delfim, que se define como "um prisioneiro do crescimento". Mesmo que os juros nominais de 19,5% tragam a taxa de inflação de 2005 para a meta ajustada de 5,1%, ele acha essa uma opção totalmente equivocada. "Mas Deus meu! Se eu pudesse fazer 5% de crescimento e ter 7% de inflação, eu faria." Não se trata de defender um pouco mais de inflação para se obter um pouco mais de crescimento, vai deixando bem claro. "Há uma diferença muito grande entre quem diz isso e o que estou propondo. O BC acha que o país não pode crescer mais do que 3,5% sem pressão inflacionária. Portanto, eleva os juros para impedir o crescimento. O BC aqui não age como age o Greenspan (Alan Greenspan, presidente do Banco Central americano), que eleva os juros para atingir a taxa de juros real neutra, que equivale à taxa de crescimento do produto."
Seu inconformismo com a prática da valorização cambial vem de longe. Quando todos no país se deleitavam com o real valendo pouco mais que um dólar, em meados de 1994, Delfim começou a escrever e dar entrevistas chamando a atenção para a crise de balanço de pagamentos que aquela política estava contratando. Crise que veio em 1998. Antes, como era quase uma voz solitária martelando nessa tecla, escreveu "A Crônica do Debate Interditado". A discussão sobre política cambial, naquele período, estava interditada no próprio governo FHC. Hoje, Delfim Netto volta à carga com preocupação redobrada.
Reverenciado pelos que o consideram um personagem incomum da política brasileira e de singular inteligência e perspicácia, ou olhado com certo desdém pelos que, na academia, o vêem com excesso de pragmatismo e pouca ortodoxia, uma coisa é certa: Delfim é, hoje, ouvido pelo que diz de sério, e por suas tiradas impagáveis. Vasculhando entrevistas e escritos do passado, uma particularmente chama a atenção. Antes do segundo turno das eleições de 1989, que elegeram Fernando Collor de Mello em vez de Luiz Inácio Lula da Silva, Delfim chegou a aconselhar seus pares no Congresso a votar em Lula. E num momento de ironia quase premonitória, explicou: "É para resolvermos logo o problema do PT e nos livrarmos dele quatro anos depois".
Fonte
Valor econômico - 30 de setembro de 2005.