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Entrevista com Alberto Giovannini (Henrique Fleming) - Página 1
Entrevista realizada em Outubro de 2007 na comunidade Física do orkut: link da entrevista.
Introdução de Henrique Fleming
Olá a todos!
Meu nome é Alberto Giovannini, mas eu prefiro que vocês, durante esta entrevista, me chamem pelo meu "nickname", que é Henrique Fleming.
Sou um físico teórico, e professor do Instituto de Física da USP, São Paulo.
Terminei a graduação em 1962 e, após um estágio na Itália de dois anos, o meu doutoramento em 1969. Tornei-me professor titular em 1980, e em 2008 completarei 70 anos, e terei de me aposentar.
Aprendi física com grandes físicos: César Lattes, José Goldemberg, Luiz Carlos Gomes, Jorge André Swieca, e, sobretudo, Jun-ichi Osada e Enrico Predazzi.
Trabalhei em pesquisas nas áreas de fenomenologia das interações fortes, pólos de Regge, quebra espontânea de simetria em teoria quântica dos campos, cosmologia e em algumas outras esquisitices, como uma tentativa de interpretar a gravidade como efeito secundário da polarização eletromagnética do vácuo.
Sempre trabalhei na USP. Passei períodos longos como visitante em Turim, Roma e no CERN, Suiça; períodos mais curtos em toda sorte de lugares. Por exemplo, Herceg Novi, no Montenegro, onde tive a experiência de viver em um país comunista.
Vivo uma vida tranqüila e, na medida do possível, reclusa. Meu modelo é um santo da liturgia católica, cujo nome esqueci, que passou a vida toda em cima de uma coluna, no deserto. Como Sartre, detesto o poder. Tive de exercê-lo, como diretor-em-exercício, por seis meses, do Instituto de Física. Sobrevivemos (eu e o Instituto) por pouco.
Gosto de dar aulas. Não gosto de assistí-las.
Meu grande ídolo é Charlie Brown, do Peanuts.
Henrique Fleming, 15 de Outubro de 2007.
Perguntas e respostas
Adriano: Caro Prof. Fleming, em primeiro lugar gostaria de dizer com toda a ênfase possível que é um prazer para todos nós de gerações mais novas conviver com o senhor por meio da internet, em particular do orkut, e desfrutar da sua experiência, da sua inteligência e da sua boa vontade. :-)
Devo confessar que, antes mesmo do advento do orkut, era freqüentador da sua excelente home page e posso afirmar que li boa parte dos textos lá presentes, incluindo os técnicos. Certamente muito me foi acrescentado por tais estudos.
Sem dúvida o senhor é uma fonte de inspiração para todos da comunidade, além de contribuir de maneira única quando se trata dos nossos assuntos preferidos: física, matemática e afins.
Agora uma pergunta inicial. Quais são os seus planos para a aposentadoria? Pretende continuar envolvido com a física e o seu ensino? Tem algum projeto mais específico?
Fleming: Adriano, meus planos para a aposentadoria são de continuar fazendo exatamente a mesma coisa, isto é, dedicar-me à física e ao seu ensino. Vou continuar a escrever na internet, e possivelmente dar algumas aulas, num ritmo um pouco mais leve.
Adriano: Mais duas perguntas.
Primeiro uma de natureza mais pessoal. Se o senhor fosse um jovem estudante de física hoje, o que acredita que gostaria de estudar? Procuraria se especializar em que área e trabalhar com que tipo de problemas?
Agora a segunda, ligada à primeira, mas com um enfoque mais objetivo. Quais são as áreas quentes da física conteporânea, a seu ver? De onde podem e devem sair resultados impactantes?
Fleming: O Dirac responderia: "I don't know!".
Se eu fosse um ser puramente racional, escolheria a astrofísica, pela grande revolução em matéria de aquisição de dados. Os telescópios em órbita e os que são capazes de corrigir as distorções cusadas pela atmosfera transformaram inteiramente a astrofísica. è um segundo renascimento. Muitas surpresas já apareceram, e muitas mais aparecerão.
Contudo, eu não sou puramente racional, e sou, filosoficamente, um platonista, apaixonado pelas idéias. E, no terreno das ideías, o que mais me fascina é o que Wigner chamou de "the unreasobable effectiveness of mathematics in physical science". Gostaria de embarcar na pesquisa que usasse com o máximo radicalismo este maravilhoso instrumento de pesquisa da natureza que é a matemática (eu digo para os meus alunos que a matemática é o sexto sentido dos homens, e o sétimo das mulheres). E a área da física onde isto se dá, no momento, é a teoria das supercordas.
Daniel: E, já que eu estou com a mão na massa mesmo, faço a primeira pergunta da entrevista:
Como o Sr vê a Ciência brasileira?
Fleming: O Brasil é muito forte na área de biologia e medicina. Segundo o meu amigo Salmeron, está entre os líderes mundiais no estudo da Parasitologia. Nesta área, e em outras biomédicas, existe uma tradição mais antiga, vários institutos de pesquisa seculares, e grupos de grande qualidade espalhados pelo país. Creio que o nosso primeiro Nobel virá daí.
Meu grande e saudoso amigo argentino, Juan José Giambiagi, apaixonado pelo Brasil, me dizia, uma vez: "o Brasil precisa de um Nobel. Aí, tudo se transformará. E o mais provável é que venha da biologia. Não importa muito de onde venha".
Eu vi a Física crescer muito rapidamente, no Brasil. Quando voltei do exterior, com a minha tese de doutoramento debaixo do braço, eu tinha dois trabalhos publicados. Naquele ano, o CNPq instituiu um programa de estímulo às regiões menos desenvolvidas que funcionava mais ou menos assim: físicos de expressão teriam direito a uma verba anual do CNPq para visitar, on short notice, regiões menos desenvolvidas, para iniciar colaborações, convidar estudantes, etc. Sabem qual era o critério para se ser um físico de expressão? Ter três trabalhos publicados! Daí a seis meses eu, doutorado havia três meses, já era um "físico de expressão"...
Isto foi em 1969, e mostra o crescimento impressionante que houve, nesse intervalo. Não há como negar, então: a derivada é fortemente positiva. Hoje já temos trabalhos importantes de brasileiros, e engendrados no ambiente brasileiro.
A área que mais cresceu foi, creio eu, a de matéria condensada, que era, precisamente, a mais escassa, no Brasil, por acidentes históricos: Wataghin não era um fisico de matéria condensada. Acredito que será daí que virão os nosso primeiros grandes impactos em nível mundial.
Daniel: Quais são as suas (da Ciência brasileira) qualidadades e deficiências quando comparadas com o paradigma internacional (e.g., europeu, estadunidense, japonês, australiano).
Isso posto, na sua opinião, o que deveria ser feito para inserir a Ciência brasileira na Comunidade Internacional?
Um grande abraço, []'s!
Fleming: Os maiores obstáculos ao desenvolvimento científico, e à sua assimilação pelo país, são bem conhecidos: a baixa qualidade da educação pré-universitária, e a má administração generalizada. Temos que formar profissionais de alto nivel para superar esses obstáculos. isto naõ se faz em um dia.
Há também obstáculos de caráter cultural, muito menos sérios, mas que, de qualquer forma, atrapalham. Ainda prevalece no país um apreço muito maior à erudição do que à capacidade criativa. Costuma-se dizer: "Fulano sabe muito mais física do que Beltrano" para significar que Fulano é melhor físico do que Beltrano. Por causa dessa ambição pela erudição, muitos estudantes brasileiros hesitam em lançar-se em uma pesquisa original "porque ainda precisam aprender muito". É um erro, porque (1) Nunca se saberá tudo e, pricipalmente, (2) enfrentar um problema novo é a maneira mais eficiente de aprender os instrumentos necessários para resovê-lo.
Uma ocasião perguntaram ao grande físico soviètico Zel'dovich como ele fazia para trabalhar tão bem em tantas áreas distintas. Ele respondeu: quando entro numa área nova, naõ vou à procura de um livro. Aprendo apenas o necessário para identificar um problema interessante. A partir daí, vou aprendendo aquilo que o problema pede. Descobri que, assim, acabo obtendo um conhecimento muito mais sólido e profundo sobe a área.
É claro que há estudantes brasileiros que são tão bons que, apesar do ambiente cultural desfavorável, têm grande sucesso, em particular quando vão ao exterior, e concorrem com os delá, em geral saindo-se muto bem. Mas haverá muitos mais, quando esses problemas forem resolvidos.
Paulo E. Caro Prof Fleming:
Duas perguntas:
O senhor acredita que a busca por uma Teoria de Unificacao seja uma necessidade real da fisica ou somente (embora nao menos legitima) ansiedade intelectual dos fisicos?
Fleming: As primeiras unificações da ciência moderna (Newton descobrindo que a maçã é uma Lua pequena; Maxwell unificando ótica e o eletromagnetismo, etc) foram surpresas, portanto não foram o resultado de uma busca deliberada pela unificação. Porém, é inegável que descobrir que duas leis diferentes são apenas instâncias diversas de uma mesma coisa é um caminho para a simplificação, e gostamos de pensar que a marcha rumo à simplificação seja também a marcha rumo as causas primeiras, ou seja, à explicação.
Projetos deliberados de busca por uma unificação, porém, não são tão freqüentes. O mais famoso é o de Einstein, motivado pela grande beleza conseguida na geometrização da teoria da gravitação, e da conseqüente ambição de geometrizar "tudo". Mais recentemente, o sucesso das teorias da gauge, e o fato de que a estrutura grupal oferece até uma linguagem matemática adequada para unificar (buscar grupos simples que contenham os semi-simples sugeridos pela fenomenologia) inaugurou uma nova fase, que ainda perdura.
Contudo, que exista uma teoria unificada, conquanto esteticamente desejável, é o nosso desejo, e não uma imposição da natureza.
Paulo E. Que perspectivas o senhor vê hoje para se chegar a tal teoria? É que algo que se pode esperar no medio prazo?
Muito obrigado.
Fleming: Provavelmente, no processo de unificar as interações já consagradas com a gravitação, se descobrirá a existência de ainda outras interações. O processo pode ser infinito. Mas uma unificação parcial é possível a médio prazo. Talvez até já exista :-)
sheldon: Como professor de ensino médio fiquei curioso com uma parte de sua apresentação
- "Gosto de dar aulas. Não gosto de assistí-las."
Parece ambíguo ! O Sr. não gostaria de assistir suas aulas?
Fleming: Bem, eu, inevitavelmente, assisto as minhas aulas...
De fato, da forma que eu escrevi parece que eu estou dizendo que gosto de dar aulas que eu não gostaria de assistir. O que eu queria dizer é que eu, quando era aluno, tinha de me esforçar para assitir a maioria das aulas de meu curso. É claro que havia muitas exceções: Schenberg dava aulas lindíssimas, cheias de idéias e desafios, assim como Lattes, Goldemberg, o professor Lyra da matemática, Jun-ichi Osada e, naturalmente, Richard Feynman, que, literalmente, hipnotizava toda a platéia.
Nas "outras" aulas, porém, eu não conseguia prestar atençaõ muito mais do que 5 minutos: e então era o professor para um lado, e eu para outro. E essas não eram as aulas realmente ruins, eram as médias. O problema, na maioria dos casos era mesmo eu. As aulas realmente ruins também existiam, mas eu não as assistia: usava o tempo para estudar por mim mesmo.
Fique claro que eu estou falando da universidade. No colégio eu era uma máquina de assistir aulas: prestava muita atenção a tudo e tomava notas, para não precisar estudar muito!
alan: Há quanto o tempo senhor começou a se dedicar ao hobby de escrever artigos online.Gosto muito deles, apesar de só poder acompanhar os introdutórios, "Calculus for the practical man"
Fleming: Na realidade eu nunca os considerei um hobby, mas uma parte importante, e muito trabalhosa, de minha profissão. O que é um hobby é eu mesmo fazer a homepage, aprendendo as várias programações necessárias, como (La)Tex, PHP, html, etc.
Há muitos anos, desde os anos 60 que eu costumo escrever meus cursos e matérias auxiliares para meus alunos. A ideía de usar uma homepage veio da minha proverbial desorganização: eu vivia perdendo cadernos e anotações, e tinha que repetir tudo de novo. A homepage deu uma certa estabilidade e organização ao processo. Mas eu ainda escrevo à mão antes, e só depois ponho na tela.
LuCaSSS: olá , Prof Fleming
so 2 perguntas...
como que o mundo vê um cientista brasileiro? existe algum preconceito?
Quais as principais dificuldades que vc encontrou durante seu trajeto?
Fleming: Eu posso te dizer como o mundo científico vê um cientista brasileiro: sem particulares preconceitos. No ambeiente científico, principalmente entre físicos teóricos, o número de estrangeiros de terras distantes é enorme. Como dizia o grande físico holandês Leon Van Hove. "the language of Physics is broken English, and every physicist speaks it, except for the British and American".
O mundo em em geral, vê um cientista como um ser estranho: pouc diferença faz se é brasileiro ou inuit.
As principais dificuldades que eu encontrei no meu trajeto foram:
Externas: a vida, numa universidade muito visada, durante a ditadura militar. de longe a principal.
Internas: um pouco mais de inteligência teria me ajudado bastante...
Pedro: O que você acha da entrevista em que Lattes chama Einstein de farsa?
Link: http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/cesarlattes.html
Fleming: Discordo.
Esta é talvez a principal vantagem da ciência: a autoridade não valida necessariamente o juízo emitido. Lattes era um gênio, foi o meu primeiro patrão, e encontrei pouquíssimas pessoas, pelo mundo afora, tão brilhantes quanto ele. O que não impede que ele esteja errado nessa opinião sobre Einstein.
Ricardo: Primeiramente gostaria de ressaltar que para nós, que estamos escolhendo a física hoje para os nossos futuros, é uma oportunidade maravilhosa ter contato com alguém como o senhor.
O senhor falou em má administração generalizada. O que poderia ser feito? A estabilidade de que desfrutam os servidores públicos brasileiros, incluídos aí os pesquisadores das universidades e institutos, é negativa para a nossa ciência? As brigas por poder dentro dos institutos estão minando o desenvolvimento da pesquisa ou elas não são tão reais assim?
Fleming: A má administração a que eu me refiro é a dos governos, em quase todas as instâncias. Administração subordinada à política partidária não funciona. Administração é coisa séria.
Acho que a estabilidade dos pesquisadores das universidades e institutos não é necessariamente um mal, e nem tem sido, nas boas universidades brasileiras, desde que se entre por concursos abertos, públicos e bem divulgados, como manda a lei Na Europa existe a estabilidade há muito tempo, e os resultados são ótimos.
Brigas por poder atrapalham, mas sempre existiram e sempre existirão: é da natureza humana. Não é nada típico do Brasil.
Ricardo: O senhor falou que viveu num país comunista. Como foi a experiência?
O Richard Feynman, em um dos seus livros, fala muito sobre a maneira como os alunos brasileiros aprendiam as coisas - em suma, decorando e não entendendo. Os alunos que chegam na universidade, hoje, ainda tem dificuldades para desenvolver um aprendizado real dos conteúdos? São, digamos assim, mal treinados para aprender?
Fleming: Bom, eu vivi durante 1 mês na costa adriática da então Iugoslávia, Herceg Novi, que é a maneira de eles escreverem Herzegovina. Agora acho que é Montenegro. Esta região da Iugoslávia era inteiramente dominada pelo turismo (a costa é maravilhosa, e há cidades preciosas, como Dubrovnik, antiga colônia veneziana). Havia até supermercado, e os hotéis eram luxuosos e incrivelmente baratos! O que se notava de socialismo era pouco, mas significativo: não havia servilismo. Quando eu dei uma gorjeta para o garçon, ele me explicou que era remunerado adequadamente e propôs que eu o convidasse para beber um drink no bar, em vez da gorjeta. Parece incrível que ali, não muito tempo depois, tenha havido uma guerra ferz!
Eu assisti a um curso dado pelo Feynman, no CPPF, e dava para perceber que ele gostava da turma: achava interessantes as perguntas e elogiou certas objeções feitas a alguns de seus argumentos. Quando surgiu o livrinho de memórias dele, fiquei moderadamente surpreso com as críticas dele aos estudantes brasileiros. Naturalmente, elas se aplicam a boa parte dos estudantes brasileiros, mas se aplicam também a boa parte dos estudantes italianos e americanos: sou membro da American Association of Physics Teachers, e essas críticas são freqüentes antre eles. Não vamos cometer suicídio por isso!
Olcyr: Professor, obrigado por responder a esse tópico que certamente acrescentará a todos, tanto os que já estudam física, quanto os que ainda sonham com isso.
Tenho algumas perguntas. Qual foi o fator dominante que o incentivou a estudar física?
Fleming: Meu pai era um apaixonado pela física. Lembro-me de minha irmã reclamando, à mesa do jantar, na época em que os pais falavam e os filhos ouviam: "Louis De Broglie, de novo? "
Havia uma esplêndida biblioteca, de engenharia e física, em minha casa. Meu pai assinava o Physics Today. o American Journal of Physics, o Scientific American e até o Physical Review (que, confessou-me mais tarde, não entendia). Aliás, esta revista teve um papel decisivo para mim. Foi nela que descobri que se podia estudar física no Brasil. Até então eu achava que ia ter de fazer alguma engenharia, e depois virar algum tipo de físico amador. Folheando um Physical Review de 1957 vi uns dois ou três artigos de José Goldemberg, que estava no Canadá, mas tinha como endereço permanente: Departamento de Física, Universidade de São Paulo. Neste momento decidi sobre o meu futuro.
Olcyr: O senhor tem alguma idéia do porquê das carreiras ligadas à ciência serem tão desvalorizadas no Brasil, a ponto de raramente figurar entre as primeiras opções dos jovens?
Fleming: Bem, há a pouca tradição cultural. Vejo aqui no orkut, com freqüência, que os alunos encontram resistência dos pais, frente à escolha de uma carreira que não seja uma das tradicionais carreiras burguesas. E os pais, por sua vez, estão legitimamente preocupados com o futuro dos filhos, do ponto de vista econômico. Hoje em dia uma formação científica é uma bom investimento para o futuro, mas existem melhores, do ponto de vista de remuneração. É natural que a maioria procure a melhor remuneração. Isto está acontecendo também nos Estados Unidos, e é uma fonte de preocupação para eles.
Um dado interessante: o famoso físico russo Evgueni Lifshitz (é o Lifshitz do Landau-Lifshitz), de quem tive a fortuna de ser amigo, contou-me que, na União Soviética, todos queriam ser cientistas, e havia o problema oposto, de recrutar médicos, engenheiros, advogados, contadores...
Adriano: Prof. Fleming, o que o senhor sugeriria para melhorar o nível das graduações em física no Brasil? O senhor não acha que existe atualmente uma tendência de nivelar por baixo o ensino, em profundidade e abrangência do conteúdo, em nome de razões políticas duvidosas (como formar mais alunos anualmente)? Professores que procuram fugir a essas diretrizes populistas sofrem muita pressão institucional para se moldarem?
Fleming: Na realidade, dado o nivel do ensino médio no Brasil, o nivel das graduações é até mais elevado do que é lícito esperar. Isto contém, implicitamente, a resposta para o que deve ser feito para melhorar o nivel.
Temo pelas soluções "instantâneas", que, o mais das vezes, resolvem as desigualdades via solução trivial: ruim para todos. É conveniente olhar atentamente para o que a Índia e a China estão fazendo: creio que a solução virá de lá.
Não conheço muitas instituições: sempre trabalhei na mesma. Nunca sofri pressões de diretrizes populistas.
Adriano: O senhor acredita que o modelo do Curso de Ciências Moleculares, no que tange à flexibilidade curricular, possa ser exportado com sucesso para outros cursos, como o de Física mesmo? Quais são os empecilhos que têm retardado esse progresso (ou as pessoas não estão convencidas de que isso é de fato um progresso)?
Fleming: Sim, acredito. Aliás, é quase óbvio: poucos estudantes têm alguma idéia do que é a física atual, a química atual, e assim por diante. Algum tempo de contato, antes da decisão detalhada da carreira, é aconselhável. Basta ver o número de estudantes das Ciências Moleculares que escolhe, no avançado, um destino diferente daquele em que iniciou os estudos universitários.
Muitas pessoas não estão convencidas de que isto seja um progresso, e sua posição é, então respeitável. Outros simplesmente não querem "mexer nesse vespeiro", e aí trata-se apenas de comodismo.
Ozzy: Prof. Fleming,
A muito tempo esperava por sua entrevista...
O Sr. acha que hoje é possível que um físico trabalhe em mais de uma área durante sua vida profissional?
Pergunto isso pois todas as áreas da física me parecem interessantes e convidativas. Não gostaria de engessar minha formação me especializando em alguma área. Mas gostaria de saber se isso é idealismo de minha parte.
Caso seja possível, o que seria preciso? Bastaria ter uma boa formação? Fazer e dominar as principais disciplinas que ofereçam bons fundamentos?
Fleming: É perfeitamente possível, e comum. Embora estatísticas mostrem que a maior parte dos cientistas passem a vida toda reelaborando sua tese de doutoramento, isto é visto como um defeito.
Schenberg aconselhava seus estudantes a não se especializarem durante a formação, e, durante a carreira, a optarem pela "especialização temporária": durante algum tempo, pense só nuamcerta área; de vez em quando, terminado um bom trabalho, mude de área. E ele sempre procedeu assim.
Creio que isto seja uma questão de temperamento. Os que se interessam por muitas coisas, acabarão trabalhando em muitas áreas. É preciso lembrar, porém, que a pesquisa exige muita focalização: durante a realização de um projeto de pesquisa, é preciso toda a concentração possível. Contudo, é preciso estar consciente de que os super especialistas vão publicar mais do que você.
Ozzy: Ou o tempo de pesquisa é um pré-requisito? Por exemplo alguém que fez Doutorado em Partículas poderia fazer um pós-doc em Supercordas?
Fleming: Uma pessoa que fez doutorado aprendeu a fazer pesquisa. A partir daí deveria poder trabalhar em qualquer área, mesmo em outras ciências: possui o tirocínio para aprender o que for preciso. Vai ter que ralar muito, mas me parece que isso não é obstáculo para você!
Ozzy: Que conselhos (tanto para a vida quanto para a profissão?) o Sr. daria aos jovens físicos da comunidade?
Desculpe pelo tanto de perguntas...
Obrigado por sua participação
Fleming: Keep an independent mind.
Leia os grandes autores.
Guerreiro do Sol: Idealismo X materialismo
Prof. Fleming, O senhor se coloca como Platonista/ Idealista assim como eu....pergunto ao senhor se podemos dizer que a moderna física quântica-relativista indicaria para uma explicação idealista para o universo ?....um abraço...
Fleming: Bem, o idealista sou eu, e não a mecânica quãntica. Tudo o que eu estudo acaba sendo visto sob o prisma do idealismo. Para mim o teorema de Pitágoras já sugere uma interpretação idealista do universo. Mas há pessoas que são naturalmente materialistas, e consideram que toda a ciência teórica é uma superestrutura que não tem existência independente de nossas mentes. Ambas as posições são respeitáveis. O belo da ciência é que ela pode ser feita independentemente da solução desse problema (idealismo X materialismo). Até porque eu acredito que nunca será resolvido.
Fernando: Professor Fleming, é uma honra poder entrar em contato com alguém que faz parte da história da física brasileira.
Por exemplo, o senhor disse que já estudou com o professor Feynman, um dos professores daqui também já estudou com ele, o professor Enivaldo Bonelli, aliás ele se graduou e concluiu seu mestrado na USP, após foi fazer seu doutorado em Cornell e foi aluno e conhecido do prof. Feynman. O que eu noto é que além dele ser um bom pesquisador, não é de buscar um conhecimento geral, ele sempre diz que: "quando se entra no curso de física Deus pergunta 'você quer ter boa memória ou quer ser inteligente', referindo-se sempre que é necessário aprender física báscia, para apenas aplicá-la, para tentar entender o que se estuda, não decorá-la! Tendo outros professores ótimos, como o professor Joel. Todos sendo bons pesquisadores.
Bem sobre a não gostar de assistir aulas, somos dois. Mas uma questão que tenho notado, é que quanto melhor o professor, digamos melhor em termos não de erudição, mas de ser um bom pesquisador na sua área, melhor é a aula. Isso realmente tem algum sentido, ou foi apenas um espaço amostral muito pequeno que eu observei?
Fleming: O espaço amostral foi muito pequeno. Conheço excelentes, profundos pesquisadores, que são professores "localmente ruins", isto é, se você olha assiste a uma aula isolada, é um sofrimento. Os exemplos que eu conheço incluem pessoas que entram em pânico frente a uma platéia (Boltzmann era assim, pelo menos no final de sua vida) e outras que não possuem a mais rudimentar disciplina em sua didática: dão aulas como se o aluno fosse o próprio professor. Um professor muito ilustre que eu conheço, por exemplo, frente a uma dificuldade imprevista durante a aula, é incapaz de seguir adiante, e permanece girando em torno do problema de forma incompreensível para os outros, sem nunca desistir, esquecendo-se de que nem a sua reputação está em jogo, nem é possível aos alunos acompanhar sua seqüência de tentativas e erros.
No entanto, é bem mais raro que um bom pesquisador "globalmente ruim" didaticamente.
Fernando: Segunda pergunta, eu tenho conhecido alguns professores, que insistem em dizer que graduação em física não quer dizer nada, no sentido de que graduação não indica que o camarada será um bom pesquisador ou não, como o professor Novello entre outros. O senhor também tem essa opinião, ou o senhor acha que no geral a graduação já indica se o camarada será um bom pesquisador? Apesar ainda do longo caminho de pós-graduação pela frente.
Bem professor, só resta agradecer por esta enorme contribuição, que só tem a enriquecer a todos.
Fleming: Vale sempre a pena ouvir o que tem a dizer uma pessoa com a experiência de pesquisador e formador de pesquisadores como o prof. Novello. É verdade. Conheço exemplo dos dois extremos: um aluno que teve, provavelmente, o melhor histórico escolar do IFUSP e que decepcionou como pesquisador. Outro, não era levado a sério como aluno e se tornou um dos grandes nomes mundiais da física de baixa temperatura, chegando a liderar o Instituto Kammerlingh Onnes, da Holanda. Porém, é claro que estes são casos excepcionais. Vale a pena ser um bom aluno de graduação.
alan: O senhor normalmente comenta entusiasticamente as eventuais referências de suas notas. Em outro tópico o senhor disse ter "herdado" algumas delas do seu pai. Em quais momentos o senhor foi eventualmente apresentado a obras como coleção do Landau & Lifshitz, a coleção do Moysés Nussenzveig (provavelmente essa só seus alunos a usaram ), Lectures on physics entre outros. O senhor se mostra especialmente entusiasmado com livros clássicos da Análise, na sua opinião qual seria o principal benefício que um estudante não só da física, mas de outras áreas como engenharia teria ao estudar esses textos.Com quanto tempo o senhor acha que a maioria dos estudantes (sem extremos) poderia começar estudar mais seriamente esse tópico mesmo que independentemente.
Fleming: No caso do Landau, Lifshitz foi assim: eu estava no fim do segundo ano, e queria começar a estudar mecãnica quântica por conta própria. Consultei o prof. Moscati, que me recomendou o livro do Bohm. Outros me recomendaram o livro do Schiff. O do Bohm eu entendia, mas era muito "wordy", e se estendia mito sobre as preliminares à mecânica quântica, e eu estava muito impaciente para chegar logo às "vias de fato". O Schiff era quase um receituário, e inapropriado para estudo independente. Já desanimado, dei uma passada numa livraria que ficava nas proximidades da faculdade e vi, entre os livros que tinham acabado de aparecer, o Landau, Lifshitz, "Quantum Mechanics". Foi só folhear para ver que era exatamente o que eu estava procurando. Comprei-o na hora, e o uso desde então. Quando os demais volumes apareceram, foram imediatamente adquiridos.
A coleção do Moysés Nussenzveig me foi presenteada por ele mesmo, com uma dedicatória. Eram só os dois primeiros volumes.
Não me lembro dos detalhes sobre como conheci o Feynman Lectures, mas foi um sucesso instantâneo.
Quanto aos tratados clássicos de análise, em particular o Jordan, o entusiasmo nos meus comentários é, de fato, uma citação do Freeman Dyson e outros, que adoravam o livro. Eu só fui lê-lo muito mais tarde, e, de fato, é um livro extraordinário. Mas hoje a matemática mudou muito de linguagem, e recomendo que se estudem livros mais atuais, e também muito bons, como os do Lang, o Loomis-Sternberg, Spivak, etc.
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